Hanns Scharff, o Nazista da Paz
Uma das melhores partes do excelente Bastardos Inglórios é o Standartenführer Hans Landa, brilhantemente interpretado por Christoph Waltz. Ele conseguia ser aterrador, sem levantar um dedo exceto para comer um strudel.
Na vida real existiram alguns Hans Landas, mas o mais eficiente interrogador nazista, Hanns Scharff, era o exato oposto de tudo que a gente imagina (corretamente) da expressão “interrogador nazista”.
A norma para a Gestapo era a boa e velha tortura, ameaças, privação sensorial, pacote Jack Bauer completo, mas não era muito eficiente. Tortura funciona muito bem em filmes, mas na vida real alguns prisioneiros usarão isso como fonte de força pra se recusar a falar, já outros vão ser torturados e abrir o bico, dizendo tudo que o torturador quer ouvir.
Esse é o principal risco. Quando o cara diz que só há ele e mais um cúmplice, o interrogador não acredita, força a barra, o cara pra não dizer adeus ao testículo favorito diz que há várias células com dezenas de terroristas, começa a inventar nomes e locais, e um monte de recursos são gastos caçando fantasmas.
A abordagem de Hanns Scharff era diferente, mas como ele chegou a seu posto, na Luftwaffe?
Nascido na Prússia, filho de uma família rica do ramo têxtil, Scharff se morou com os pais em Leipzig, aonde depois de vários anos aprendendo artes, marketing, administração. Ele arrumou um emprego na Adler Motorwerke, e logo foi enviado para Johanesburgo para cuidar da filial local.
Lá ele se enrabichou por uma dona inglesa chamada Margaret Stokes, por acaso filha de Claud Stokes, que se tornaria um dos maiores ases da Primeira Guerra Mundial.
Eles permaneceram em Johanesburgo por dez anos, até que durante uma visita à Alemanha em 1939 um pequeno arranca-rabo chamado Segunda Guerra Mundial estourou, e Hanns não teve como voltar pra casa. O jeito foi arrumar um emprego local e um cafofo pra esposa e os três filhos, mas como não há nada ruim que não possa piorar, ele foi convocado.
Hanns estava destinado a ser mandado pra Frente Russa, mas uma força maior interveio: Uma mulher furiosa protegendo seu homem. Margaret foi atrás do Alto-Comando, sem ligar pro detalhe de ser uma cidadã inglesa E filha de oficial da RAF. Tanto fez que foi recebida por um general da Wehrmacht.
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Ela explicou ao General que seria um absurdo desperdiçar na Frente Russa um sujeito viajado, inteligente, patriota e completamente fluente em inglês como Hanns. O general concordou, mandou um telegrama pra Unidade de Panzers aonde Hanns estava alocado, transferindo-o para o corpo de intérpretes. O telegrama chegou um dia antes da Unidade partir pra Rússia.
Alocado em um serviço burocrático, Scharff acabou irritando o comandante, mas o impressionou ao mesmo tempo e em 1943 foi transferido para o Centro de Interrogatórios da Luftwaffe, aonde eram interrogados pilotos aliados feitos prisioneiros.
Como bom novato ele ficou calado observando os interrogadores mais experientes, anotando os resultados, vendo o que faziam de errado e quanto sucesso obtinham com técnicas de intimidação. Até que um belo dia, em um passeio de avião com o resto da equipe, um acidente mata todo mundo menos Hanns, que é promovido a chefe do departamento.
Scharff passa a experimentar novas técnicas. Ao invés de ameaças de tortura, violência e discos no Nickleback em loop, a abordagem passou a ser… empatia.
Com seu inglês impecável Hanns se abria para os prisioneiros, “não tá fácil pra ninguém”, evitava perguntas diretas, deixava os caras se sentindo à vontade. Ele providenciava tratamento médico, comida de qualidade, alojamentos decentes.
A maioria das sessões de interrogatório eram apenas conversas sobre tudo menos a Guerra. Hanns falava de sua esposa inglesa, de seu sogro herói de guerra inglês.
Em algum momento ele chegava, assustado, explicando que caso o piloto não desse alguma informação extra, além de nome, posto e número de série, era classificado como espião e transferido para a Gestapo, então qualquer coisa servia, tipo número da Unidade, ou de qual base aérea partiu. Todo mundo colaborava.
Hanns se tornava amigo dos prisioneiros, às vezes trazendo e dividindo comida caseira e até bebida. Ele costumava acompanhar prisioneiros em visitas a outros pilotos aliados internados em hospitais, e depois de fazer com que prometessem não fugir, os levava para caminhadas nos bosques próximos aos campos de prisioneiros.
Certa vez ele conseguiu que um prisioneiro inglês desse uma volta pilotando um caça BF-109, depois que ele prometeu pousar de volta. O inglês cumpriu a promessa, e falou horas comparando o desempenho com o de seu Spitfire, cheio de entusiasmo.
Uma outra técnica que Hanns usava muito era decorar a capivara do prisioneiro. A Luftwaffe geralmente tinha uma ficha detalhada de cada um, Hanns explicava que não havia nada que o sujeito soubesse que já não sabiam, e provava. Fazia as perguntas, e dava as respostas, sem deixar o prisioneiro falar. No meio ele enfiava uma pergunta em especial, o sujeito comentava displicente respondendo, achando que eles sabiam aquela também.
A grande ironia da tática de se fingir amigo dos prisioneiros, com direito a tardes na piscina e almoços (e provavelmente uma visita ou duas a um bordel mas não deixem a Margareth saber disso) é que em alguns casos a amizade era verdadeira, Hanns e o Tenente-Coronel Francis Gabreski, da Força Aérea dos EUA ficaram amigos a vida inteira. Curiosamente Gabreski foi um dos poucos que não revelou nada a Hanns.
Capturado pelos aliados, Hanns foi removido às pressas por soldados americanos quando as forças russas estavam prestes a invadir a região.
Com o fim da Guerra, ele escapou de Nuremberg por não ser um oficial de alta patente e pela tecnicalidade de ser um oficial nazista que nunca encostou um dedo no inimigo.
Em 1948 Hanns Scharff se mudou para os Estados Unidos, onde deu consultoria para diversas agências e organizações militares, para em seguida se dedicar à… arte.
Apaixonado por mosaicos, ele foi se tornando mais e mais conhecido no meio, até que em 1971 abriu uma firma com sua nora Monika, e criaram suas obras mais conhecidas: Os mosaicos imensos que adornam o interior do Castelo da Cinderella, na Disney:
Em dez de Dezembro de 1992, aos 84 anos, Hanns Scharff morria, na Califórnia. Seu trabalho entretanto continua, tanto maravilhando centenas de milhares de adultos e crianças, como na memória dos descendentes dos prisioneiros que ele tratou tão bem, demonstrando que você pode ser um dos caras maus, sem ser uma pessoa ruim.
Bibliografia
From Interrogation to Liberation – Marilyn Walton and Michael Eberhardt
The Interrogator: The Story of Hans-Joachim Scharff, Master Interrogator of the Luftwaffe
Hanns Scharff; Creator of L.A., State Capitol Mosaics – Los Angeles Times, 12/9/1992
Cinderella Castle Mosaic Murals
ELICITING INFORMATION THE FRIENDLY WAY: CONCEPTUALISING THE SCHARFF TECHNIQUE – Crest Security Review – Summer 2016 / Issue 1
https://contraditorium.com/2020/01/21/hanns-scharff-o-nazista-da-paz/
Interessante essa história.
Pela beleza dos mosaicos dá para perceber que o diferencial dele era a sensibilidade, empatia, bom gosto e um bom conhecimento artístico.
Daí percebemos o quão importante é para uma pessoa ter uma boa cultura. Conseguiu manter sua mente a salvo das bestialidades praticadas pela a maioria dos outros oficiais.
[Fraternos]