Sobre rebeldia e trairagem
Durante o período do Regime Militar, existiam duas matérias que foram criadas para incutir um senso cívico nos adolescentes. Eram as disciplinas de EMC - Educação Moral e Cívica e OSPB - Organização Social e Política do Brasil. A primeira era dada na sexta série e a outra, na oitava série, que na época era o último ano do ginásio, hoje chamado de Ensino Fundamental 2.
No colégio onde estudei nos anos 1970 e 80, no bairro de Pinheiros (zona oeste de São Paulo, capital), as duas matérias eram dadas pelo mesmo professor, o severo sr. Gastão.
Grandalhão, de voz trovejante e bastante disciplinador, hoje seria chamado facilmente de autoritário e fascista. Na verdade, era um cara bastante simples que gostava das coisas certas, com apreço pela disciplina e educação. Aos que se permitiam, era possível perceber um humor irônico e um certo ar de "tiozão do churrasco".
Em uma das duas temporadas em que tive aula com ele - não lembro qual - aconteceu um fato que marcaria mais do que as chatas anotações que ele fazia a gente copiar da lousa.
No intervalo entre uma aula e outra, um colega pegou o apagador de giz e grudou bem alto na parede, não lembro com o quê, depois de subir em cima de uma das mesinhas. O Gastão entrou lá, viu o apagador através de suas grossas lentes de fundo de garrafa e perguntou "Quem fez isso?", enquanto alguns risinhos iam silenciando.
O silêncio era apavorante, indicando que foi uma péssima hora pra bancar o rebelde e fazer travessuras com o professor mais bravo da escola. Ele disse: "Se o responsável não aparecer agora, a classe inteira vai assinar o livro de ocorrências na diretoria!". Mesmo com a ameaça, ninguém queria abandonar o colega, por mais sem noção que ele tenha sido. Esperava-se que o responsável, que muitos viram quem era, tivesse vergonha na cara e não prejudicasse toda a classe. Então, um colega apontou o dedo para o culpado. "Foi ele, professor!"
O Gastão franziu a testa e disse que os dois - o delator e o culpado - deveriam ir com ele até a diretoria.
"Mas por quê eu?" - indagou incrédulo o acusador.
"Eu detesto dedo-duro, traidor!"- sentenciou o professor.
Mais de três décadas depois, a situação permanece fresca em minha memória. A popularmente chamada trairagem é uma das coisas mais deploráveis em qualquer meio social. Trair um amigo, um colega, em troca de benefício próprio é algo péssimo, de puro mau-caratismo. Não se trata aqui de criticar o fundamento de um recurso poderoso da Justiça, que é a delação premiada. Extremamente útil no combate ao crime organizado, a delação premiada oferece redução de pena ou algum benefício ao criminoso que facilitar a resolução de um crime ou entregar seus cúmplices. É uma negociação pragmática, necessária e nunca atrelada a algum arrependimento, mas a interesses pessoais e, eventualmente, vingança.
Tal tipo de recurso não guarda relação alguma com o sentimento mesquinho, baixo, de alguém que acusa ou entrega quem há pouco era um amigo, colega ou aliado em troca de benefícios pessoais, favores ou mesmo para sinalizar virtude em algum meio social. Há um limite entre a conivência com um erro que pode prejudicar alguém e a lealdade a um colega; que pode não estar certo, mas a quem devemos certa consideração pela convivência na camaradagem. Traição revela baixeza, talvez resultado de índole, talvez por alguma falha na educação que formou seu caráter.
Educação é dever, não do Estado ou das escolas, mas da família. Ao sistema de ensino, compete a missão de instruir e desenvolver o intelecto. Porém, devido ao tempo de convivência nas escolas, é óbvio que muitas lições morais, éticas e motivacionais são transmitidas pelos professores. É uma responsabilidade imensa, para a qual poucos estão preparados.
Do antigo caso escolar relatado, fica a lembrança de uma lição moralmente válida, que faz muita falta nos tempos atuais.
https://reflexocultural.blogspot.com/2020/01/sobre-rebeldia-e-trairagem.html
No colégio onde estudei nos anos 1970 e 80, no bairro de Pinheiros (zona oeste de São Paulo, capital), as duas matérias eram dadas pelo mesmo professor, o severo sr. Gastão.
Grandalhão, de voz trovejante e bastante disciplinador, hoje seria chamado facilmente de autoritário e fascista. Na verdade, era um cara bastante simples que gostava das coisas certas, com apreço pela disciplina e educação. Aos que se permitiam, era possível perceber um humor irônico e um certo ar de "tiozão do churrasco".
Em uma das duas temporadas em que tive aula com ele - não lembro qual - aconteceu um fato que marcaria mais do que as chatas anotações que ele fazia a gente copiar da lousa.
No intervalo entre uma aula e outra, um colega pegou o apagador de giz e grudou bem alto na parede, não lembro com o quê, depois de subir em cima de uma das mesinhas. O Gastão entrou lá, viu o apagador através de suas grossas lentes de fundo de garrafa e perguntou "Quem fez isso?", enquanto alguns risinhos iam silenciando.
O silêncio era apavorante, indicando que foi uma péssima hora pra bancar o rebelde e fazer travessuras com o professor mais bravo da escola. Ele disse: "Se o responsável não aparecer agora, a classe inteira vai assinar o livro de ocorrências na diretoria!". Mesmo com a ameaça, ninguém queria abandonar o colega, por mais sem noção que ele tenha sido. Esperava-se que o responsável, que muitos viram quem era, tivesse vergonha na cara e não prejudicasse toda a classe. Então, um colega apontou o dedo para o culpado. "Foi ele, professor!"
O Gastão franziu a testa e disse que os dois - o delator e o culpado - deveriam ir com ele até a diretoria.
"Mas por quê eu?" - indagou incrédulo o acusador.
"Eu detesto dedo-duro, traidor!"- sentenciou o professor.
Mais de três décadas depois, a situação permanece fresca em minha memória. A popularmente chamada trairagem é uma das coisas mais deploráveis em qualquer meio social. Trair um amigo, um colega, em troca de benefício próprio é algo péssimo, de puro mau-caratismo. Não se trata aqui de criticar o fundamento de um recurso poderoso da Justiça, que é a delação premiada. Extremamente útil no combate ao crime organizado, a delação premiada oferece redução de pena ou algum benefício ao criminoso que facilitar a resolução de um crime ou entregar seus cúmplices. É uma negociação pragmática, necessária e nunca atrelada a algum arrependimento, mas a interesses pessoais e, eventualmente, vingança.
Tal tipo de recurso não guarda relação alguma com o sentimento mesquinho, baixo, de alguém que acusa ou entrega quem há pouco era um amigo, colega ou aliado em troca de benefícios pessoais, favores ou mesmo para sinalizar virtude em algum meio social. Há um limite entre a conivência com um erro que pode prejudicar alguém e a lealdade a um colega; que pode não estar certo, mas a quem devemos certa consideração pela convivência na camaradagem. Traição revela baixeza, talvez resultado de índole, talvez por alguma falha na educação que formou seu caráter.
Educação é dever, não do Estado ou das escolas, mas da família. Ao sistema de ensino, compete a missão de instruir e desenvolver o intelecto. Porém, devido ao tempo de convivência nas escolas, é óbvio que muitas lições morais, éticas e motivacionais são transmitidas pelos professores. É uma responsabilidade imensa, para a qual poucos estão preparados.
Do antigo caso escolar relatado, fica a lembrança de uma lição moralmente válida, que faz muita falta nos tempos atuais.
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Comentários
Imagina um grupo de policiais em que um deles comete algum abuso e os outros mantêm silêncio. Todos igualmente estarão a cometer o crime conjuntamente. Com o tempo o criminoso do grupo inevitavelmente terá corrompido os demais.