Uma Wikipédia do Século XIX, com papel e garrafas

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Naufrágio do SS San Francisco - Nathaniel Currier, 1854

No Natal de 1853 J. T. Watkins, Capitão do navio de transporte de tropas SS San Francisco recebeu um presente de Natal que nenhum comandante deseja: Uma tempestade em alto mar.

Assolado por ondas descomunais e ventos de furacão, o pequeno navio de 85 metros de comprimento não era páreo para o Oceano Atlântico. Um único vagalhão varreu mais de 150 pessoas do convés, a chaminé arrancada, a ponte de comando danificada. Com os motores parados e o leme danificado, não havia nada que a tripulação pudesse fazer.

O tempo foi passando e o navio se distanciava cada vez mais de sua rota. Sem rádio (Marconi só nasceria em 1874) a única forma de comunicação era através de sinais luminosos e bandeiras. Não havia como pedir socorro e o San Francisco era somente um ponto no oceano.

Até que no dia 5 de Janeiro de 1854 uma frota de resgate achou exatamente aquele ponto, salvando os 500 sobreviventes da equipagem de 700 passageiros e tripulantes, incluindo o Cônsul brasileiro Jacinto Derwanz.

Encontrar um navio perdido ao sabor das correntes foi algo inédito, fruto da ciência, do conhecimento, do pioneirismo e acima de tudo da teimosia de um sujeito chamado Matthew Maury.

Nascido em 1806, Maury é considerado pai da Oceanografia Moderna e da Meteorologia Naval. Fascinado por correntes, ventos e padrões Maury era um marinheiro nato, servindo como oficial dos EUA até sofrer um acidente em 1839. Atropelado por uma carruagem ficou impossibilitado de embarcar em navios.

Transferido para o Departamento de Cartas e Instrumentos ele começou a fuçar o imenso acervo. Entre outras informações havia diários de bordo de milhares de navios, bem como informações meteorológicas. Logo ele percebeu um padrão:

Capitães conheciam truques e atalhos, sabiam que em determinadas épocas do ano era mais vantajoso pegar determinadas rotas, economizando tempo de viagem. As correntes marítimas impulsionavam as embarcações que sabiam tirar proveito delas.

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Comandante Matthew Maury - Ella Sophonisba Hergesheimer, 1923

Comentários

  • Embora conhecidas as correntes sempre foram vistas como um fenômeno local e ocasional. Maury as percebeu como parte de um sistema muito maior. Ele compilou as informações de mais de 1 milhão de registros e criou um mapa de correntes do Atlântico Norte, mas ninguém o levou a sério.

    Marinheiros são muito, muito conservadores, e ninguém queria saber das idéias de Maury. Quando o SS San Francisco desapareceu Maury viu ali a chance de validar suas teorias.

    Debruçando-se sobre cartas náuticas, montanhas de cálculos e muito, muito café ele plotou a última posição conhecida do San Francisco, fatorou as condições climáticas, época do ano, registros meteorológicos, dados do navio e marcou no mapa um X: “O San Francisco está aqui”.

    Querendo se livrar de Maury, o Comando Naval topou enviar uma frota SE ele prometesse parar de encher o saco com essa idéia louca de um sistema mundial de correntes marítimas.

    Mesmo os mais ferrenhos críticos tiveram que dar o braço a torcer quando os sobreviventes do San Francisco começaram a sinalizar para a frota de resgate.

    Maury tornou-se um super-astro no círculo naval, mas isso foi apenas o começo.

    Como todo geek Maury era fanático por informação, e viu em sua recém-conquistada fama a chance de conseguir mais dados, tornando suas cartas mais precisas ainda. A melhor fonte de informação? Os próprios usuários.

    Seu livro de correntes, ventos e rotas ajudava navios a economizar em alguns casos 12 dias de viagem, e valia seu peso em Ouro. Mesmo assim era distribuído gratuitamente pelo Observatório Naval dos EUA, sob uma condição:

    Capitães deveriam anotar diariamente em um formulário próprio informações de data, posição, temperatura, velocidade e direção do vento. De tempos em tempos esses dados deveriam ser enviados para o Observatório.

    Também deveriam, em um intervalo determinado de dias, anotar em um papel o nome do navio, a data e a posição, colocar o papel em uma garrafa e jogá-la no mar. Se encontrassem uma dessas garrafas deveriam recolhê-la, anotar os dados da garrafa e quando e onde foi encontrada e escrever informando o Observatório.

    Antes da invenção do rádio Maury montou uma rede mundial de colaboradores, logo países compondo o equivalente a ¾ dos navios do mundo participavam do projeto, incluindo inimigos declarados dos EUA. As cartas geradas a partir deles eram disponibilizadas para toda a Humanidade. Até o Papa fez sua parte, criando bandeiras de distinção para navios dos Estados Papais que enviassem os dados meteorológicos para Maury.

    Enquanto boa parte do mundo praticava a escravidão Maury conseguiu um feito só possível em um mundo sem fronteiras, sem distinções raciais ou sociais, onde a informação de um cargueiro chinês vale tanto quanto a de um destroier inglês. Ele mostrou que sem satélites, sem radares, sem estações de radiomonitoramento, sem balões ou sequer telégrafo intercontinental era possível que um grupo de pessoas colaborasse e criasse algo que nenhuma delas, não importa quão rica ou inteligente conseguiria sozinha.

    Maury criou sua própria Internet, usando papel, garrafas e inteligência. Na estante de praticamente todo oficial naval do mundo, os livros de Maury são um “Bitch, please”para todo garoto que descobre a Wikipedia e acha que está sendo pioneiro em projetos colaborativos.

    Hoje ele é matéria obrigatória na Academia Naval dos EUA e será homenageado com o USNS Maury, um navio oceanográfico de pesquisas de 110 metros de comprimento de classe Pathfinder, seu título informal: “Matthew Maury – O Trilheiro dos Mares”.

    http://www.techtudo.com.br/platb/gadgets/2012/01/18/uma-wikipedia-do-seculo-xix-com-papel-e-garrafas/
  • Lindo, isso. E muito útil.
    Existem outros Matthew Maury que apenas não tiveram ainda, a chance de demonstrar sua genialidade.
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