Sofrimento Condicionado


FLERTANDO COM O DESASTRE

A notícia que me chamou a atenção é daquelas que só viram notícia nos dias de hoje: cidadão filma cidadã fazendo ioga numa praia carioca fazendo comentários de baixo calão sobre ela. Cidadão publica o vídeo na sua rede social. O vídeo viraliza, cidadão é demonizado, cidadã fica sabendo e logo temos uma notícia sobre como ela é mais uma sobrevivente de abuso sexual. Nas notícias relacionadas, mais várias matérias sobre mulheres que sofreram com assédio… 2020 é assim. Só eu que estou vendo a armadilha sendo colocada no caminho das mulheres?

Claro, num mundo ideal as pessoas têm um mínimo de bom senso. É escroto falar de uma mulher assim, mais ainda ter orgulho disso ao ponto de tornar um vídeo desses público. Não sou contra a ideia genérica de reprimir esse tipo de comportamento, até porque durante boa parte da nossa história exigia-se algum decoro da parte dos homens ao falar sobre mulheres desconhecidas, e você provavelmente apanharia ou até morreria se “mexesse com a mulher errada”. Ninguém estaria inventando nada de novo.

Comentários

  • Mas ambientes culturais mudam. E o atual traz de volta um tipo parecido de controle sobre o comportamento masculino que em tese remete a eras mais socialmente polidas da nossa história, mas que na prática é fruto de ideologias de gênero muito mais recentes. Antigamente, mulheres também não podiam ser pegas falando coisas do tipo sobre o sexo oposto: acabava com o “valor de mercado” dela ser vista como alguém vulgar. Não era necessariamente uma política sobre vilões e vítimas, mas um comportamento esperado de uma pessoa que se valorizava. Hoje em dia, uma mulher fazendo os mesmos comentários sobre um homem na rua talvez fosse retratado como algo positivo e inspirador.

    De uma certa forma, esse decoro do passado era uma forma de sempre manter vulgaridade e intimidade relacionadas. Sem intimidade, trate a outra pessoa com o máximo de respeito. Com intimidade, valem as regras combinadas entre as pessoas. Mas a onda de acusações de assédio recentes não tem nenhum componente de volta às raízes: faz parte daquela ideia de relações de poder entre grupos que contaminou quase todo o cenário sociocultural humano nas últimas décadas. Um mundo de opressores e oprimidos.

    E embora não se possa negar que exploração e abuso seja parte integrante da forma como construímos a humanidade até hoje, e especialmente que um mundo melhor passa por desmontar boa parte dessas estruturas; há algo muito sério a se considerar aqui: se você reduz a humanidade a opressores e oprimidos em tempo integral, as pessoas começam a se adaptar a esses papéis. Sem a nuance de que por vezes estamos num desses papéis e por vezes em outro, muita gente vai precisar vestir a casaca de um deles para ter qualquer chance de se entender nesse mundo.
  • Voltando ao caso dos assédios de homens contra mulheres, tem algo que me parece muito errado na forma como se espera que as mulheres reajam: como apenas vítimas. Algumas frases como “não culpe a vítima” parecem universalmente positivas até que você presta atenção em como elas podem ser utilizadas para fins ideológicos escusos. Embora a pessoa vitimada por uma exposição de baixíssimo nível como a mulher da notícia não possa ser culpada de forma alguma pelas palavras escolhidas pelo homem que filmava, nem tudo nessa vida é uma relação de abuso. A própria mulher escolheu usar palavras como “estupro” para definir seus sentimentos, e isso sugere que de alguma forma, o ambiente cultural baseado nessas relações doentias de opressores e oprimidas vazou para dentro da cabeça dela. Seja por ideologia própria, seja pelo papel que se sentiu obrigada a interpretar diante da situação.

    Não podemos mais garantir que o sentimento verdadeiro da mulher seria apenas um “você é nojento, tira o vídeo do ar” e tudo acabaria com uma desculpa esfarrapada do homem. Eu não sei mais dizer se todo o turbilhão emocional que essas mulheres vítimas de abusos não violentos parecem demonstrar é escolha delas ou uma espécie de nova “obrigação social”. Historicamente é uma péssima ideia não seguir os padrões sociais vigentes: se eu fosse ela e na verdade só tivesse achado de péssimo gosto e nada mais, talvez me sentisse obrigado a criar todo esse clima análogo ao estupro para não colocar um alvo na minha cabeça. Afinal, outros imbecis poderiam achar que tinham sinal verde para fazer coisas parecidas. Ou talvez até pior: virar inimigo da causa feminina e motivo de longos artigos analisando meu estado mental.

    Eu não estou afirmando nada sobre a mulher do vídeo, porque nem é especificamente sobre ela. Já disse o que sente e ninguém tem que questionar o sentimento alheio: ele é o que é. O ponto aqui é que talvez ela e tantas outras estejam começando a se sentir obrigadas a reagir de forma cada vez mais dramática para corresponder às expectativas de um momento cultural que transforma opressão em fetiche coletivo. E isso pode ser muito cruel com a pessoa.
  • Pulando para um assunto relacionado, mas mais pesado: psicólogos que lidam com crianças abusadas sexualmente tem que ser muito cuidadosos para não alimentar os traumas delas, mesmo que isso não seja diretamente compatível com a empatia que se sente por elas. Não se pode deixar alguém crescer definido por um momento horrível e fazer disso sua identidade. Às vezes, na sanha de acalentar o sofrimento alheio, podemos deixá-lo vivo por muito mais tempo do que o necessário. A pessoa precisa conquistar o poder de seguir em frente mesmo com as cicatrizes que vai levar para a vida.

    É humano querer proteger e consolar quem acreditamos que foi injustiçado, mas como de costume, a dose diferencia o remédio do veneno. Assim como não se cria uma criança para ser apenas a vítima de um adulto doente, não se deixa uma mulher adulta tocar a vida sendo apenas uma vítima indefesa de abusos masculinos. Empoderamento não é postagem de mulher obesa na rede social, é combater uma mentalidade de inferioridade inevitável. Agora, adianta empoderar e ao mesmo tempo criar uma cultura baseada em cumprir o papel de vítima?

    Se você fingir algo pelo tempo suficiente, é bem capaz de começar a acreditar. A mente se acostuma com essa posição, o mundo de opressores e oprimidos fica tão inescapável que qualquer ideia de equilíbrio vai desaparecendo. Ou você é uma coisa, ou é a outra. Reprime-se comportamentos masculinos do tipo que vemos no vídeo, mas reprime-se também uma reação feminina que não seja “literalmente estupro”. Qualquer chance de poder está diretamente relacionada com o papel de opressor. Agora o opressor é o homem, e se quiserem sair da posição de oprimidas, tem que tomar o lugar deles.
  • Culturas radicalizadas só servem para gerar conflito e disputa de poder. Não há paz possível. Você é uma vítima até tomar o poder. E se o mundo só funciona assim, o objetivo final é ser opressor, não ser igualitário. Agora, quando é que se faz essa transição? As táticas de um grupo e de outro são completamente diferentes: não dá para ser opressor reclamando mais que o outro. A posição de poder almejada custa caro, e precisa pisar em muita cabeça para chegar até lá. Só que como fazer isso com um grupo de pessoas que internalizou a posição de oprimidos? Eles vão se comer vivos antes de fazer qualquer mudança significativa na sociedade.

    Ah… verdade. Eles vão se comer vivos antes de fazer qualquer mudança significativa na sociedade. O papel de vítima tem suas vantagens, mas assim que você se define a partir dele, pisa numa armadilha terrível que tira seu poder real de mudar o mundo de forma realista. Não fique falando baixarias de mulheres desconhecidas e publicando na rede social, mas também não deixe que esse tipo de comportamento defina quem você vai ser na vida. Não vale o preço, não chega a lugar algum.

    Custa ser moderado?

    http://www.desfavor.com/blog/2020/08/sofrimento-condicionado/
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