As estantes e as "láives"

Da importância das ciências pandêmicas: as láives e a taxonomia das estantes. Como fica a de Caetano?

(arigatô Ayrosa) - Eduardo Affonso está com Carlos Eduardo Novaes

6 de agosto às 10:52


Minha primeira laive eu quis fazer onde? Na sala. Na frente da estante. Porque é o lugar mais luminoso e porque a parede verde, as prateleiras brancas e os livros multicoloridos fariam um fundo bacana.

Quis o Destino que meu uaifai não pegasse lá. Já reclamei com a Net, mas reclamar com a Net é como pedir que não haja blitz sexta-feira na Lagoa-Barra ou ao copo que escorregou da mão que não se espatife quando quicar no chão.

Tive que fazer a laive no quarto que uso como escritório – com paredes verde clarinho que viram branco neve na gravação. E onde não dá pra ostentar nada, a não ser alguns pôsteres - do Centre Pompidou e do Museu Britânico, mas que ninguém identifica. Paciência.

E eis que, vendo laives alheias, sou acometido do grande mal dos nossos dias, que é a inveja da estante.

A pessoa fala sobre a heterogeneidade das instâncias decisórias, e eu de olho nos livros tortos. Cita Husserl, Popper, Habermas e Jónsdóttir Vilhjálmsson (sim, tem que citar um de quem nunca ouvi falar e que, possivelmente, é inventado) e eu tentando ler as lombadas. Faz um gesto de aspas com os dedos e eu nem percebo, ocupado que estou em desvendar as mensagens subliminares daquele fundo que, para mim, é mais figura que a figura que está falando sem parar.

Me tornei, sem quer, um someliê de prateleira de livro. Reconheço estilos, capto propostas, identifico tendências. Cheguei, inclusive, a categorizá-las.

Existe a estante entrópica, trabalhada na aleatoriedade. Seu paradigma é a do Ariel Palácios. Ali tem mais informação que no Gúgol, na Barsa, nos arquivos do Globo Repórter e na sua tia fofoqueira - juntos.

Há a estante-manifesto, ou estante-narrativa, que costuma ser tão bagunçada quanto a EAP (Estante Ariel Palácios), mas nada está ali por acaso.

Nesse gênero estão a EGC (Estante Guga Chacra), a EFO (Estante Flávia Oliveira) e a ELES (Estante Luís Eduardo Soares).

Repare que na EGC há uma pilha temática à direita, só de livros relacionados ao Oriente Médio. Na EFO, podemos identificar um “saravá”, uma pintura naïf de uma preta de turbante e uma boneca preta – e a estante fica na diagonal, dando mais profundidade aos temas. A ELES tem uma placa da Rua Marielle Franco bem no ponto focal, na prateleira em que a maior parte dos livros está inclinada para a esquerda. Ententedores entenderão.

A meio termo entre as estantes aleatórias e as estantes manifesto, está a a EJP (Estante Jorge Pontual). Tudo está menos engruvinhado que na EAP, mas a estética de brechó e de Caçadores de Relíquias é a mesma. E percebe-se o dedo do personal estânter do Guga, com a pilha de livros à direita.

Na linha “A bibliotecária não aparece há seis meses” temos a EAF (Estante Armínio Fraga), que é uma proto-EAB (Estante Aldir Blanc), lídima representante da classe das estantes “A bibliotecária nunca deu as caras, ou deve estar soterrada em algum lugar, sem esperança de resgate”.

Do outro lado do espectro, temos a ECL (Estante Cristiana Lôbo), numa linha mais gurmê, e a EAM (Estante Alessandro Molon) que, como o dono, não tem um fio fora do lugar. E as estantes fósseis, com livros devidamente embalsamados, como a EJB e EOC (respectivamente, cenários de pronunciamentos de Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho).

Numa faixa louprofáil – ou estudante morando em república - está a estante da Andréia Sadi. No estilo biblioteca da faculdade de ciências contábeis, a da Eliane Cantanhede e da Miriam Leitão.

Paulo Guedes e o ministro Luís Barroso têm aquelas de escritório de advocacia de Juiz de Fora. José Maria Trindade, uma de gabinete de suplente de vereador de Minduri. A do Guilherme Fiúza, com vários volumes do mesmo livro e alguns mostrando a capa, emula estande de vendas de saguão de faculdade.

Não cabe aqui falar da exibida pelo Fernando Haddad, porque é cenográfica, ou a do Lula, que está lááááááááá atrás, e não parece ter livro nenhum.

Quem quiser contribuir para o desenvolvimento da estantelogia, a primeira ciência fruto da pandemia, pode postar aqui os espécimes encontrados, e vamos tentando classifica-los em reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies.

Ah, sim, minha favorita é a da Clarice Lispector - cujo centenário (o da Clarice, não da estante) se comemora este ano. Tem o plus do telefone preto, em primeiro plano. Estante vintage é outro nível.

Comentários

  • Esse texto me lembra os lombradeiros dos quadrinhos: pessoas que gastam 600 reais ou mais por edições luxuosas de Hqs que eram anteriormente baratas:

    https://www.superamiches.com/os-lombadeiros-do-youtube/
  • Percival escreveu: »
    Esse texto me lembra os lombradeiros dos quadrinhos: pessoas que gastam 600 reais ou mais por edições luxuosas de Hqs que eram anteriormente baratas:
    https://www.superamiches.com/os-lombadeiros-do-youtube/
    Se for só para servir de enfeite na estande e você já tem os gibis, acho besteira, mas, às vezes, é o único jeito de se conseguir a coleção.
    Foi o meu caso com "Sandman" e "Alien Legion"
    9e80ed4cf8ec38b9f99911621a6d2354.jpg
  • Nas Hqs temos 2 vertentes:

    Os lombadeiros que gastam 600 reais/mês no site da Panini pra comprar tudo de encadernado.

    E o pessoal saudosista que vende formatinho a preços proibitivos, que inviabilizam a aquisição do material mais simples que deveria ser acessível. Mesmo quando o material ganhou uma versão melhor e até acessível quanto, formatinhos sendo vendidos a preço de encadernados.
    Até mesmo para garimpar sebos tá complicado, um conhecido esteve no centro do Rio semana passada e já notou comerciantes de sebos vendo mercado livre para usar como base em suas mercadorias.

    Tava vendo aqui um formatinho Herois da TV número 100 de 1987 com as primeiras histórias de X-Men, Doutor Estranho, Homem de Ferro e Vingadores que comprei na feira próxima de casa por 5 reais tem gente vendendo por quase 50.

    Isso pra Marvel, mas qualquer coisa tá indo pra esse preço ou mais e nem é material procurado tanto assim só porque é formatinho. Dizem que é a nostalgia.
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