A Terra Sem Mal e o Imperialismo Tupi

GUERRA DAS TRIBOS
Esqueça o paraíso terreno. Nossos índios viviam em conflito – com direito a guerra santa, armas químicas e banquetes antropofágicos.


Junto ao mar vivia uma tribo que levava uma vida mansa, sem preocupações. Até que um dia, sem que ninguém esperasse, chegaram os conquistadores.

Eles falavam uma língua estranha, usavam armas melhores e não tiveram dó dos derrotados: queimaram suas aldeias, mataram seus guerreiros e escravizaram mulheres e crianças. Quem conseguiu fugir teve de ir para bem longe da praia, para nunca mais voltar. Foi assim que, por volta do ano 1000, os tupis se tornaram os donos do litoral.

Muito antes dos portugueses, a vida dos índios já não era fácil. As tribos viviam estado de guerra ininterrupta, endêmica, como defende o sociólogo Florestan Fernandes no clássico A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. Por terra, por rios, por vingança, por esporte. Até por motivos religiosos, como parece ter sido o caso dos tupis.

Os ancestrais dos tupis vinham de onde hoje é Rondônia, onde se diferenciaram da concorrência graças à agricultura de coivara, baseada em queimadas periódicas – sim, índios faziam queimadas. Segundo o antropólogo francês Pierre Clastres, os tupis acreditavam para valer no mito da Terra Sem Mal – um lugar fértil, sem doenças nem tragédias, e que, garantiam os espíritos, ficava no Leste. A crença nessa terra prometida motivaria um êxodo que durou séculos, sempre rumo ao Atlântico.

Chegando lá, expulsaram para o interior os antigos residentes – que receberam apelido de tapuias – em tupi, “selvagens”. (Prova de que a história é escrita pelos vencedores até quando eles não sabem escrever; hoje, os ex-tapuias são o tronco Macro-Jê.)

“Quando os tripulantes da armada de Cabral desembarcaram na Terra de Santa Cruz, os tupis e os guaranis efetuavam denodados esforços para completar a conquista do litoral”, escreve Jorge Couto. “Naturalmente, ganhavam a disputa os grupos tribais mais coesos, numerosos e tecnologicamente mais apetrechados.”

E bota apetrechado nisso. À distância, usavam flechas – às vezes impregnadas de venenos vegetais e animais, às vezes incendiárias, com tufos de algodão em chamas. Ao se aproximar de uma aldeia a ser invadida, metiam medo batendo os pés no chão e soprando instrumentos feitos com ossos de inimigos. Durante o cerco, apelavam para a guerra química: jogavam pimenta-da-terra na fogueira e faziam a nuvem tóxica chegar aos adversários. No combate corpo a corpo, preferiam tacapes, ideais para trincar crânios. A aldeia era incendiada e tudo terminava em churrasco. Prato principal: prisioneiros.

O gosto dos outros
O termo certo não seria canibalismo, mas antropofagia. A diferença é sutil, mas faz sentido: canibal é quem come carne humana por necessidade; antropófago é quem faz por gosto mesmo. Os índios buscavam adquirir a valentia dos rivais. Havia todo um ritual que podia durar de dias a meses em que o prisioneiro era humilhado e homenageado, até que chegasse o dia em que seria servido para a tribo inteira – cada povo obedecia a uma divisão das partes entre homens e mulheres, velhos e jovens. O suicídio não seria uma opção? Nada disso: ser devorado era a prova de que era um guerreiro valente.

Os portugueses souberam explorar essas rivalidades. Por uma vitória momentânea contra adversários tradicionais, os índios se aliavam aos invasores – sem se dar conta que se aproximar deles causaria sua derrota permanente.

https://super.abril.com.br/especiais/1499-o-brasil-antes-de-cabral/

Comentários

  • editado December 2021
    Muito interessante.

    Apenas um aparte:

    O autor diz "O termo certo não seria canibalismo, mas antropofagia. A diferença é sutil, mas faz sentido: canibal é quem come carne humana por necessidade; antropófago é quem faz por gosto mesmo."

    Penso que há um equívoco: Mais exatamente o canibalismo entre animais da mesma espécie é relativamente comum, mas o canibalismo entre humanos é denominado antropofagia.
  • Volpiceli escreveu: »
    Junto ao mar vivia uma tribo que levava uma vida mansa, sem preocupações. Até que um dia, sem que ninguém esperasse, chegaram os conquistadores.
    Era o povo dos sambaquis, que chegou uns 10 mil anos antes.
    Volpiceli escreveu: »
    Muito antes dos portugueses, a vida dos índios já não era fácil. As tribos viviam estado de guerra ininterrupta, endêmica, como defende o sociólogo Florestan Fernandes no clássico A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. Por terra, por rios, por vingança, por esporte. Até por motivos religiosos, como parece ter sido o caso dos tupis.
    A guerra era para eles o mesmo que estudar, conseguir um emprego e ser promovido para nós.
    Os meninos começavam desde cedo a aprender a lutar. Mais tarde, viravam auxiliares dos guerreiros, depois guerreiros e, se bem sucedidos, chegavam a chefe de sua aldeia.

    Guerras não aconteciam apenas por desentendimentos ou disputa de terras. Mesmo sem motivo, era parte da cultura deles atacar uns aos outros para mostrar valor e "subir na vida".
  • editado December 2021
    A história mostra que sempre nos servimos dos esportes para dar vazão à nossa sede de competição. Conforme o caso, até mesmo vertendo o sangue do adversário (inimigo).
    Os espetáculos das lutas entre gladiadores geravam apostas e faziam milionários.

    Nos dias atuais as leis e costumes moderam tais impulsos hereditários mas, exceto os jogos de salão todas as outras formas de competição guardam resquícios dessa impulsividade primitiva.

    As lutas, como o box, jiu-jitsu, karatê e várias outras, refletem no expectador, a subconsciente busca por uma catarse social.
    Infelizmente não é o suficiente e muitos entre nós ainda espancam as mulheres, vizinhos, desconhecidos, e também as minorias sociais, numa sede incontida de autoafirmação pela violência.

    Com o suceder dos séculos o aprimoramento da educação e das leis tem procurado moderar tais manifestações, mas que apenas as canalizaram para outras áreas, com menor brutalidade aparente.

    Habitualmente os enfermos procuram o diagnóstico dos médicos avaliando a gravidade de seus achaques ou incômodos.

    Também nós, diariamente vamos às redes sociais e expomos as mazelas que denunciam a precariedade de nossa educação. Sentimo-nos inseguros e não queremos nos afastar da tribo.

    Apenas a verdadeira bondade, a gentileza e a alteridade, revelarão a nós mesmos o quanto nos distanciamos de nossa ancestralidade tribal.

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