O Escultor Perfeito e o Padeiro que Queima os Pães
Publicado originalmente em 9/9/2004 12:11:28
por Acauan
Que diríamos de Michelangelo Buonarroti, se o seu magnífico David apresentasse entre seus perfeitamente delineados músculos de mármore um único que não fizesse parte da anatomia humana?
Ou de um padeiro cujo todos os pães por ele feitos fossem queimados?
Ninguém atribuirá perfeição como criador a alguém que produz sistematicamente obras defeituosas.
Culpar a criatura não é desculpa.
A mais perfeita das estátuas é, obviamente, inferior ao artista que a esculpiu. A pedra, mesmo em sua forma mais bela, continua sendo apenas pedra.
É natural e esperado que a criatura seja inferior ao ser criador. Um pão perfeito ainda não é lá grande coisa na hierarquia dos seres quando comparado ao padeiro, por mais imperfeito que ele seja, o que não impede que a criatura possua perfeição dentro do propósito para o qual foi criado.
Se esquecermos um pouco as chatices filosóficas sobre nossa incapacidade de aferir a perfeição, o Davi de Michelangelo pode ser um exemplo de peso (5,5 toneladas de mármore) de o quanto uma criatura perfeita testemunha a favor de quem a criou.
Uma criação tosca a ponto de levar seu próprio autor a frustrar-se dela e desejar destruí-la por completo, sugere um criador com mais pretensões do que talento.
Enquanto il Fiorentino, maravilhado diante de sua obra terminada, ordenava à rocha que falasse, um outro escultor que, após contemplar o trabalho concluído, preferisse destroça-lo com o malho a assina-lo com o cinzel confessar-se-ia mais habilidoso no uso daquela ferramenta do que no deste instrumento.
A interpretação do relato bíblico da criação, segundo o qual um Deus perfeito criou um Homem imperfeito pode ser derivada para, pelo menos, dois caminhos:
- O Homem é imperfeito em sua natureza, mas perfeito dentro do propósito da criação, como o Davi é uma representação não viva, portanto imperfeita, da figura humana, mas perfeita como obra de arte;
ou
- O Homem é imperfeito dentro do propósito da criação, o que remete a um criador imperfeito.
Não consigo enxergar outra possibilidade além destas duas.
Seria loucura subestimar o padeiro por seus pãezinhos não saberem cantar o Coro di Schiavi Ebrei, do Verdi, mas se encontramos carvão onde deveria existir casca crocante, é melhor procurar outra padaria.
Um argumento muito batido por religiosos é que o Davi de Michelangelo e os pãezinhos do Seo Manoel não tem livre arbítrio, o Homem sim, logo, não podemos culpar Deus pelas imperfeições advindas não da criação, mas das livres escolhas humanas.
Bem, eu estranharia muito um escultor que sucatasse metade de suas criações.
Que dizer de uma obra constituída de bilhões de seres dos quais nem um único utilizou seu livre arbítrio de modo satisfatório aos desígnios divinos?
O Jesus utilizou, dirão eles.
Ele não conta, é tido como Deus, ou filho de Deus, ou uma das pessoas de Deus, sei lá. Seja o que for está fora da regra. E mesmo que contasse, um acerto em bilhões de erros não melhora muito a estatística.
Se de todos os seres criados, nenhum, ou um só – e ainda com um tremendo pistolão por trás, fez uso satisfatório de seu livre arbítrio, só podemos concluir que ou o livre arbítrio por si só conduz ao mal, sendo portanto um defeito ou então os humanos possuem tendência atávica a fazerem mau uso do livre arbítrio.
Em ambos os casos fica configurada claramente a existência de defeito de fabricação.
Tudo isto considerado, se o Homem fosse um produto de consumo qualquer PROCON obrigaria Deus a reembolsar todos os compradores lesados e a recolher toda a criação para os devidos ajustes.
Um criador perfeito não cria seres defeituosos. Se fazia parte do propósito da criação que o livre arbítrio resultasse na opção voluntária e plena pelo BEM, temos que a obra de Deus é um grande fiasco e ele um padeiro queimador de pães.
Mas ainda tem a história da queda. De novo.
Os humanos seriam perfeitos, teriam caído e esta queda teria se refletido em toda a sua descendência e, em última instância, em todo o Universo.
Dá na mesma. O defeito de fabricação continua lá e o que é pior, espalhando-se como caruncho de pão em pão, fornada após fornada, enquanto o padeiro apenas olha os bichinhos tomarem conta da padaria.
Quando muito, dá umas marretadas no estoque quando fica nervoso ou manda um ajudante separar e salvar uma ou outra broa da qual gostou mais.
Para quem não acredita em Deus tanto faz como tanto fez. Tudo isto é apenas elucubração teórica.
Mas fico surpreso quando vejo cristãos de algumas vertentes se referirem a si próprios como “grandes vermes sujos e grosseiros” (isto entre eles, que são os eleitos, nem quero pensar em como se referem aos ateus).
É como se dissessem que Deus é um padeiro perfeito, mas seus pães são uma merda.
Vá entender...
Eu estou quase desistindo.
por Acauan
Que diríamos de Michelangelo Buonarroti, se o seu magnífico David apresentasse entre seus perfeitamente delineados músculos de mármore um único que não fizesse parte da anatomia humana?
Ou de um padeiro cujo todos os pães por ele feitos fossem queimados?
Ninguém atribuirá perfeição como criador a alguém que produz sistematicamente obras defeituosas.
Culpar a criatura não é desculpa.
A mais perfeita das estátuas é, obviamente, inferior ao artista que a esculpiu. A pedra, mesmo em sua forma mais bela, continua sendo apenas pedra.
É natural e esperado que a criatura seja inferior ao ser criador. Um pão perfeito ainda não é lá grande coisa na hierarquia dos seres quando comparado ao padeiro, por mais imperfeito que ele seja, o que não impede que a criatura possua perfeição dentro do propósito para o qual foi criado.
Se esquecermos um pouco as chatices filosóficas sobre nossa incapacidade de aferir a perfeição, o Davi de Michelangelo pode ser um exemplo de peso (5,5 toneladas de mármore) de o quanto uma criatura perfeita testemunha a favor de quem a criou.
Uma criação tosca a ponto de levar seu próprio autor a frustrar-se dela e desejar destruí-la por completo, sugere um criador com mais pretensões do que talento.
Enquanto il Fiorentino, maravilhado diante de sua obra terminada, ordenava à rocha que falasse, um outro escultor que, após contemplar o trabalho concluído, preferisse destroça-lo com o malho a assina-lo com o cinzel confessar-se-ia mais habilidoso no uso daquela ferramenta do que no deste instrumento.
A interpretação do relato bíblico da criação, segundo o qual um Deus perfeito criou um Homem imperfeito pode ser derivada para, pelo menos, dois caminhos:
- O Homem é imperfeito em sua natureza, mas perfeito dentro do propósito da criação, como o Davi é uma representação não viva, portanto imperfeita, da figura humana, mas perfeita como obra de arte;
ou
- O Homem é imperfeito dentro do propósito da criação, o que remete a um criador imperfeito.
Não consigo enxergar outra possibilidade além destas duas.
Seria loucura subestimar o padeiro por seus pãezinhos não saberem cantar o Coro di Schiavi Ebrei, do Verdi, mas se encontramos carvão onde deveria existir casca crocante, é melhor procurar outra padaria.
Um argumento muito batido por religiosos é que o Davi de Michelangelo e os pãezinhos do Seo Manoel não tem livre arbítrio, o Homem sim, logo, não podemos culpar Deus pelas imperfeições advindas não da criação, mas das livres escolhas humanas.
Bem, eu estranharia muito um escultor que sucatasse metade de suas criações.
Que dizer de uma obra constituída de bilhões de seres dos quais nem um único utilizou seu livre arbítrio de modo satisfatório aos desígnios divinos?
O Jesus utilizou, dirão eles.
Ele não conta, é tido como Deus, ou filho de Deus, ou uma das pessoas de Deus, sei lá. Seja o que for está fora da regra. E mesmo que contasse, um acerto em bilhões de erros não melhora muito a estatística.
Se de todos os seres criados, nenhum, ou um só – e ainda com um tremendo pistolão por trás, fez uso satisfatório de seu livre arbítrio, só podemos concluir que ou o livre arbítrio por si só conduz ao mal, sendo portanto um defeito ou então os humanos possuem tendência atávica a fazerem mau uso do livre arbítrio.
Em ambos os casos fica configurada claramente a existência de defeito de fabricação.
Tudo isto considerado, se o Homem fosse um produto de consumo qualquer PROCON obrigaria Deus a reembolsar todos os compradores lesados e a recolher toda a criação para os devidos ajustes.
Um criador perfeito não cria seres defeituosos. Se fazia parte do propósito da criação que o livre arbítrio resultasse na opção voluntária e plena pelo BEM, temos que a obra de Deus é um grande fiasco e ele um padeiro queimador de pães.
Mas ainda tem a história da queda. De novo.
Os humanos seriam perfeitos, teriam caído e esta queda teria se refletido em toda a sua descendência e, em última instância, em todo o Universo.
Dá na mesma. O defeito de fabricação continua lá e o que é pior, espalhando-se como caruncho de pão em pão, fornada após fornada, enquanto o padeiro apenas olha os bichinhos tomarem conta da padaria.
Quando muito, dá umas marretadas no estoque quando fica nervoso ou manda um ajudante separar e salvar uma ou outra broa da qual gostou mais.
Para quem não acredita em Deus tanto faz como tanto fez. Tudo isto é apenas elucubração teórica.
Mas fico surpreso quando vejo cristãos de algumas vertentes se referirem a si próprios como “grandes vermes sujos e grosseiros” (isto entre eles, que são os eleitos, nem quero pensar em como se referem aos ateus).
É como se dissessem que Deus é um padeiro perfeito, mas seus pães são uma merda.
Vá entender...
Eu estou quase desistindo.
Entre ou Registre-se para fazer um comentário.
Comentários
Não dá para falar de livre arbítrio e, se havia uma boa razão para ele fazer isto, é uma boa razão segundo os critérios dele, não nosso. Será que os condenados ao sofrimento eterno aceitarão seu destino sem reclamar porque "Deus tem suas razões"?
Crentes honestos reconhecem que este é um argumento forte contra a existência de Deus, nestes termos.
O livre arbítrio poderia existir como a escolha entre modos alternativos do BEM ou mesmo escolher entre o BEM e o moralmente neutro, não sendo necessário a existência do mal para que o livre arbítrio existisse.
Temos o dogma da não retrogradação "moral" junto c/o da criação dos espíritos simples e ingênuos, portanto moralmente neutros. Ainda mais depois que ele sabendo da teoria do Darwin introduziu a "evolução" desde os "animais" pros "mais evoluídos" hominais (lembrando a quem eventualmente não saiba que no kardecismo humanos não são animais).
Então a única escolha aceitável dentro desse conjunto de ambos os dois dogmas seria entre BEM e NEUTRAL.
Nunca o mal à la Hitler, Stalin, sadistas, assaltantes, Daesh...
E se essas pessoas fazem o que fazem por doença, a culpa tem que ser atribuída ao Criador onipotente. Não fecha de novo.
Nesse ponto o chiquismo com sua queda judaico-roustaingnista é mais coerente.
E tem os "puristas" que adoram o Kardec e desprezam tudo que tenha a ver c/o canonismo atual febeano...
Ainda assim posso pensar em uma saida parcial para o dilema central.
Deus cria criaturas auto-replicantes e com capacidade de auto-construção.
No design divino a criatura humana inicia a vida completemente dependente, sem autonomia e literalmente rastejando nos próprios escrementos e leva um tempo até que um dia ela possa andar ereta sob suas próprias pernas, cuidar de si própria e talvez se tornar um medalhista olímpico.
Talvez quando as criaturas terminarem de se auto-construir as coisas melhorem.
Sempre existe a chance de estarmos olhando para a obra inacabada, depreciando a sujeira e bagunça do pó de mármore espalhado para todos os lados enquanto a criação embora tenha semelhança com a forma humana, continua sem detalhes e sem graça.
A saida é dizer que a obra não está pronta.
Faz algum sentido, mas ainda não explica certas tragédias e exageros macabros da vida, como certas doenças horrendas ou coisas do tipo.
Seria preciso uma explicação muito louca e impensável para resolver todo o problema com o que existe ao nosso redor e concluir que a existência é perfeita.
A existência é sem dúvida um milagre, mas que tipo de milagre é difícil dizer.
Ou demos muita sorte de existir, ou muito azar.
Na Teologia Cristã, alvo do texto, o Homem seria o pináculo da criação, daí os questionamentos.