Princípio da Ascensão

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O Princípio da Ascensão é o princípio estético que diz que uma obra deve evoluir ao longo do tempo - que o nível de satisfação do espectador deve ir aumentando conforme a obra caminha em direção ao fim. Claro, isso vale apenas pras artes temporais como o cinema, a música, o teatro e a literatura - e não para a pintura ou a escultura, por exemplo, que são são artes estáticas.

"O primeiro mandamento de toda arte temporal é: Guarde o melhor para o final." - Robert McKee

De onde vem esse princípio?

O ser humano é naturalmente atraído por narrativas ascendentes: por coisas que evoluem e parecem estar caminhando para um futuro melhor do que o presente e o passado - como uma flor se desabrochando ou uma criança nos primeiros anos de vida. Pense em algo que acontece na vida real: até os 20 e tantos anos, a natureza garante uma espécie de narrativa ascendente pro ser humano, pois seu corpo e seu intelecto estão num processo automático de evolução (na maioria dos casos). É por isso que celebrações de aniversários de crianças costumam ser muito mais cheias de otimismo do que as de alguém na meia-idade. Após essa fase da juventude, a natureza não nos garante mais uma narrativa ascendente automática num nível biológico: é responsabilidade do adulto continuar se desenvolvendo de outras formas se ele quiser preservar algum entusiasmo ao seu redor (desenvolvendo seu caráter, sua mente, produzindo coisas mais importantes, se tornando mais bem sucedido, etc).

Coisas que ficam estagnadas ou perdem energia e se deterioram ao longo do tempo são naturalmente deprimentes para o ser humano, pois nos remetem ao processo de morte. Uma narrativa ascendente representa pro subconsciente uma espécie de vitória momentânea sobre a morte - é como se durante aquela experiência, a ordem natural das coisas tivesse magicamente sido invertida. Em vez de o tempo avançar em direção ao tédio e à tristeza, ele avançou em direção à alegria e à vida.


Vamos pensar no sexo: se o orgasmo fosse a primeira coisa que acontecesse no contato entre 2 pessoas e daí pra frente a experiência se tornasse menos e menos prazerosa, não haveria um incentivo pras pessoas continuarem o ato por muito mais tempo. É justamente o fato do sexo ser uma narrativa ascendente em direção a um clímax que o torna um "entretenimento" atraente pra tantas pessoas (num nível puramente físico). É por isso também que, em uma refeição, tendemos a comer a salada primeiro e a sobremesa por último, e que os fogos de artifício tendem a acontecer no final de um evento.

Já numa obra de arte, temos que ir além do nível sensorial. Precisamos caminhar em direção a emoções mais satisfatórias e a significados mais satisfatórios. Se você começa um filme com uma cena de ação onde o herói enfrenta meia dúzia de bandidos, e ao longo do filme vai colocando mais e mais bandidos pra lutar contra o herói, terminando numa grande batalha com centenas de pessoas, isso NÃO é uma narrativa ascendente. Se a ação estiver divorciada de valores e emoções, após 2 ou 3 cenas de luta o filme cairá na monotonia independente do número de pessoas na tela. Nesses casos há também o problema da repetição:

"A lei dos Rendimentos Decrescentes diz o seguinte: Quanto mais vivenciamos algo, menos efeito aquilo tem. Uma experiência emocional não pode ser repetida muitas vezes seguidas com o mesmo efeito. O primeiro sorvete de casquinha é uma delícia. O segundo não é mau. O terceiro te deixa enjoado." - Robert McKee

Pra garantir uma experiência satisfatória, o artista não só precisa entender os diversos tipos de desejos do espectador, mas também saber dosar e orquestrar a satisfação desses desejos criando uma narrativa ascendente.

Não adianta ter uma narrativa monótona, entediar o espectador por horas, e no final vir com um momento surpreendente que arrebate a plateia. Desde o começo já deve haver a promessa de algo desejável no horizonte. Uma isca - ou diversas iscas - que provoquem determinadas vontades no espectador, que serão satisfeitas aos poucos pelo artista.

"Uma composição musical requer que você mantenha sua plateia mais interessada no que irá acontecer do que naquilo que está acontecendo agora. Mesmo quando um momento maravilhoso está ocorrendo numa canção, os ouvintes estão subconscientemente aguardando o próximo "momento". É isso que significa construir energia ao longo de uma música, e é isso o que chamamos de forma. É indicar sutilmente que algo de bom irá ocorrer. Esse senso constante de antecipação é crucial. Seja na letra, na instrumentação, na dinâmica ou em outro aspecto da composição." - Gary Ewer

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O Princípio da Ascensão não se aplica apenas à estrutura da obra como um todo, mas também a segmentos menores da estrutura. Nos melhores filmes, cada cena é construída de forma a criar uma pequena narrativa ascendente com um pequeno clímax, assim como cada ato da história. Não apenas o livro como um todo pode ter uma estrutura ascendente satisfatória, mas também cada capítulo e cada parágrafo. Esses picos ao longo da narrativa devem ser seguidos de momentos mais calmos onde a energia volta a cair, pra que um novo ciclo se inicie buscando picos mais altos, culminando no clímax. Nós sempre precisamos de recompensas a curto e a médio prazo se quisermos ter energia pra perseguir objetivos a longo prazo.

A (quase) exceção que às vezes encontro pra essa "lei" da ascensão é no caso de obras que pretendem ser um grande êxtase do começo ao fim: em vez de começarem num nível baixo de energia e irem crescendo aos poucos, elas já começam numa grande explosão e tentam apenas manter o nível até o final (afinal, antes do Princípio da Ascensão vem o Princípio do Prazer, que é ainda mais fundamental). Mesmo nesses casos, alguma dinâmica ainda é necessária pra que o tédio eventualmente não tome conta - só que em vez dessas obras representarem uma curva inclinada para cima, a "linha" está o tempo todo no alto, com apenas alguns picos surgindo de vez em quando pra não deixar o interesse cair (isso é mais comum em músicas do que em filmes, afinal é impossível manter alguém em êxtase por 2 horas).

Não estou sugerindo aqui que toda obra de arte deva buscar um grande êxtase, que essa curva ascendente deva sempre ser dramática e atingir os picos mais altos. Uma obra pode ser perfeitamente bem sucedida com uma ascensão sutil, sem atingir os extremos. O importante é manter o senso de que a curva está indo para cima e não para baixo - de que se o espectador acompanhar a obra até o final, algo que ele deseja mais do que ele tem agora irá acontecer (o que tem muito a ver com o vídeo que fiz sobre motivação de personagem).

"Seres humanos são organismos caçadores de objetivos. Não estamos felizes a não ser que estejamos caminhando para atingir algo que queremos" - Brian Tracy

Esse princípio é um dos mais fundamentais e universais no mundo da arte e do entretenimento, e é um que parece estar sendo cada vez mais ignorado na cultura popular. Até algumas décadas atrás, era parte do senso comum que uma obra deveria buscar uma curva ascendente - crescer em intensidade, em complexidade, em significado, em estímulo, em emoção, em beleza. O propósito da arte em geral costumava ser o de entreter, sem medo de alimentar os prazeres naturais e instintivos do espectador. Até obras comerciais medianas e sem grande valor artístico muitas vezes funcionavam, pois estavam seguindo fórmulas e clichês que respeitavam esses princípios básicos. O Princípio da Ascensão nunca foi uma técnica avançada, um segredo dos grandes gênios, e sim algo tão óbvio e intuitivo que nem precisava ser explicado de maneira teórica.

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Algo parece ter mudado no senso comum dos artistas, e esse princípio hoje em dia existe mais como uma convenção antiga que as pessoas às vezes seguem sem saber por que. Pegue por exemplo a noção de que uma canção deve ser divida em versos e refrões - e que o refrão deve ser mais prazeroso que o verso. Isso já garante algum nível de ascensão na maioria das composições, mas alienados dos prazeres do espectador e sem entender o Princípio da Ascensão, os músicos atuais param por aí. Se você ouve uma música até o primeiro refrão hoje em dia, você provavelmente já ouviu tudo o que ela tem a oferecer em termos de evolução. Os próximos versos e refrões serão parecidos e não apresentarão nada de muito mais satisfatório musicalmente. Nos sucessos do passado, era comum você ter que esperar até a ponte ou o último refrão pra ouvir seu trecho favorito da música - o momento mais virtuoso do vocalista, a variação mais bonita da melodia ou do arranjo. A música estava sempre evoluindo - às vezes até durante o fade out, se você aumentasse o volume, era possível ouvir um último "momento".

Ao contrário de uma regra artificial, o Princípio da Ascensão libera o artista pra ser mais criativo, mais expressivo e inovador. Entendendo essa lei básica, Hitchcock por exemplo se sentiu livre pra assassinar sua protagonista no meio de Psicose - algo que jamais seria recomendado num livro de técnicas e fórmulas de roteiro, que tendem a engessar o artista. Ele sabia que desde que ele conseguisse criar uma nova narrativa ascendente após a morte de Marion Crane, e fazer o espectador continuar buscando algo na narrativa além do que ele já teve, o filme não perderia a força. Ou então Kubrick em 2001: Uma Odisséia no Espaço, que foi muito além ao quebrar com regras narrativas, criando uma história sem protagonistas - ou melhor, onde o protagonista é a humanidade em si. Ele sabia que enquanto a plateia estivesse intrigada com o monolito e caminhando em direção à solução de um mistério cósmico, ele poderia trocar de protagonistas, fazer saltos dramáticos no tempo, que o espectador continuaria interessado.

Assim como o uso de acordes maiores foi diminuindo no mundo da música ao longo das últimas décadas (como apontei na postagem Acordes e Senso de Vida), a estrutura ascendente também foi deixando de ser um objetivo primário na arte popular. Muitas dessas tendências culturais apontam pra uma mesma direção - indicam uma certa rejeição ou alienação tanto dos artistas quanto dos espectadores de seus prazeres mais primários. No lugar disso, mais atenção vem sendo dada à satisfação de desejos mais superficiais e de curto alcance - necessidades sociais imediatas como a de fazer parte das tendências do momento, ou a de levantar as bandeiras ideológicas que estão em alta.

Quando você baseia um trabalho em necessidades desse tipo, ele pode até fazer sucesso, mas atingirá o espectador de forma mais rasa e terá vida curta. Quando um bom trabalho é fundado em necessidades humanas sólidas, como o desejo por evolução, por exemplo, ele atingirá o espectador num nível mais profundo, será mais universal e resistirá ao teste do tempo.

Quanto mais cínica e desiludida uma cultura está, mais a arte que ela produz se distancia dessas formas puras de satisfação. Quando estamos doentes, geralmente não temos energia pra pensar em prazer. A felicidade parece algo distante e irreal - todo nosso foco se volta pra diminuição da dor e pra cura de nossas feridas. Apenas quando estamos num estado saudável e os problemas básicos parecem já ter sido superados é que passamos a nos preocupar com o positivo - em como buscar mais satisfação e aproveitar melhor a vida. O mesmo acontece com a cultura.



http://profissaocinefilo.blogspot.com.br/2017/04/principio-da-ascensao.html?showComment=1491755960273
 

Comentários

  • editado April 2017
    Isto se aplica a obras de ficção, mas não a biografias ou tratados sobre algum assunto em que o interesse do leitor está no fornecimento contínuo de informações sobre um assunto que lhe interessa, sem a expectativa de um clímax ou desfecho.
  • Fernando_Silva disse: Isto se aplica a obras de ficção, mas não a biografias ou tratados sobre algum assunto em que o interesse do leitor está no fornecimento contínuo de informações sobre um assunto que lhe interessa, sem a expectativa de um clímax ou desfecho.

    São exceções mesmo, até porque o objetivo é outro não?
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