Como a Cultura Encomenda Seus Ídolos

Isso me fez lembrar a discussão do @Judas sobre a indústria musical, apesar de ser um artigo de um blog de cinema achei muito a ver:

Você já se perguntou por que não temos um Mozart hoje em dia? Um Leonardo Da Vinci? Ou mesmo um Michael Jackson? Ou por que no Brasil não temos cineastas como vemos nos EUA? Com 7 bilhões de pessoas no mundo (200 milhões só no Brasil), certamente não pode ser um problema de falta de cérebros, de "matéria prima". E na era da internet, nem de falta de acesso à informação. Se hoje em dia temos mais gente, em condições melhores, com muito mais informações e ferramentas disponíveis do que em qualquer outra época, seria de se esperar que a cultura estivesse produzindo coisas muito mais admiráveis do que as que eram produzidas há várias décadas ou séculos atrás. No entanto, não é o que vemos por aí (pelo menos na área da cultura - em ciência e tecnologia ainda vemos bastante progresso). Isso ocorre, na minha opinião, porque cada cultura colhe aquilo que planta - e recebe os ídolos que encomenda.


Não estou querendo invalidar o poder que cada indivíduo tem de se desenvolver independentemente da cultura ao seu redor, estou apenas apontando o papel que a cultura exerce nesse processo: é como a relação entre uma criança e a casa em que ela cresce. Imagine uma criança com uma inclinação para as artes, mas que cresça em uma casa de médicos, que achem cultura algo superficial. Ou uma criança com uma inclinação para as ciências, mas que seja bombardeada de noções religiosas desde que comece a pensar. Se elas forem independentes o bastante, elas ainda podem crescer e desenvolver seus dons naturais, apesar das influências externas. Ainda assim, me pergunto o quão mais longe elas não poderiam ir caso crescessem num ambiente propício, que incentivasse esses dons desde os primeiros anos.



A cultura (de um país, de uma época) é como essa "casa", ou esses "pais", que podem incentivar ou inibir certas qualidades em seus filhos.



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Teria ele virado o Michael Jackson que conhecemos caso tivesse crescido numa cultura que, em vez de virtuosismo e ambição, achasse mais admirável a humildade, a moderação? Teria o pai Joseph Jackson ensaiado os filhos exaustivamente todos os dias pra se tornarem os melhores performers, se o público daquela época não desse muito crédito pra esse tipo de habilidade? Teria ele criado um grupo como os Jackson 5 numa cultura em que alegria e inocência fossem consideradas coisas ridículas, e o "sexy" fosse ser cínico, pessimista?




Claro que uma pessoa pode decidir ir contra todas as tendências culturais e se tornar excelente no que ela faz mesmo assim. Mas quase sempre, os astros de sua época não são essas flores solitárias que brotam no meio de um deserto, e sim o resultado de um longo processo de seleção natural, dentro de uma área onde existe um grande mercado e muitas pessoas de talento competindo pra se destacar.




Você não terá esse grande mercado e essa seleção natural acontecendo em áreas ignoradas ou desprezadas pela cultura. Em virtudes consideradas "fora de moda". Você só vai ter isso no que for considerado "quente" no momento, no que for "cool", popular, no que inspirar na população um real senso de possibilidade, de reconhecimento, de sucesso prático e comercial.




No Brasil, nós nunca tivemos, por exemplo, um solo fértil para o surgimento de um Stanley Kubrick, ou um Martin Scorsese no cinema. Agora pense no futebol: quantas crianças estão nesse momento praticando, competindo, com ídolos como Pelé e Neymar em mente, e que daqui a alguns anos poderão estar entre os melhores jogadores do mundo.





Pense também no "mercado" de drag queens, e no quanto ele deve ter crescido nos últimos anos simplesmente pelo fato da cultura ter tornado isso cool de uma hora pra outra. Um artista como Pabllo Vittar dificilmente surgiria fora de contexto, se a cultura não estivesse já preparada pra algo do gênero. Há 15 anos atrás, ele certamente não teria a mesma abertura pra aparecer na TV, tocar nas rádios, etc. E o importante não é nem a questão da abertura da mídia - o importante é entender que há 15 anos atrás, Pabllo Vittar provavelmente nem teria existido! Não haveria RuPaul's Drag Race na TV pra inspirar o jovem Pabllo, fazê-lo sonhar, mostrar que ele poderia ter uma carreira de sucesso como drag, e também não haveria um programa como Amor e Sexo na Globo, perfeito pra alavancar sua carreira.




Quando a cultura ao seu redor celebra aquilo que você tem a oferecer, isso te dá um incentivo único pra desenvolver suas habilidades. A possibilidade de sucesso se torna algo palpável, real. Você vê outras pessoas como você se destacando por aí, e isso te estimula, faz você querer praticar, se tornar melhor, além de te dar um referencial. Sua energia criativa está alinhada com a energia da cultura, e com isso o universo conspira ao seu favor.



Se aquilo que você tem a oferecer é desprezado pela cultura ao seu redor, se você só enxerga cinismo, desprezo e fracasso comercial pela frente, você dificilmente investirá o esforço necessário pra se tornar um mestre naquilo. Você pode tentar se adaptar, tentar fazer o que a cultura está exigindo, mas assim dificilmente será tão bom quanto seria se estivesse alinhado com seus dons naturais.



Um caso de adaptação "bem sucedida" é por exemplo o do Justin Bieber, que começou como uma espécie de menino prodígio, inocente, que cantava bem, tocava uma série de instrumentos, até que seu primeiro grande hit "Baby" foi também o vídeo com o maior número de dislikes da história do YouTube, e virou alvo de ridicularização, teve inúmeras paródias, etc. Nos anos seguintes, ele foi se adaptando, se conformando, até que conseguiu finalmente conquistar o grande público - não exibindo suas qualidades originais, mas adotando uma atitude rebelde, mudando totalmente sua identidade visual, e ficando mais em harmonia com o que é considerado admirável hoje em dia.



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Da mesma forma, hoje está todo mundo na corrida pra celebrar a diversidade, pra ser "socialmente relevante", se posicionar politicamente - não só as pessoas que de fato têm algo a dizer sobre o assunto, mas também pessoas que jamais tocariam nessas questões, e só o estão fazendo pois isso está vendendo.




Pense no que seria de Steven Spielberg se ele tivesse começando sua carreira nos dias de hoje. O que ele faria com seu talento natural pra criar otimismo, celebrar o espírito da infância - um dom que estava em demanda nos anos 80 mas não está mais atualmente? Ou pense no que seria de Christopher Nolan se ele tivesse começado sua carreira na época de Spielberg. O que ele faria com seu senso de vida trágico e sua inclinação pro subjetivismo, narrativas não-lineares, numa época em que nada disso estava em alta?



Poucos são aqueles que têm uma visão pessoal inabalável e estão dispostos a lutar contra todas as forças externas pra realizar essa visão. Olhe para os seus ídolos e se pergunte: quantos deles teriam ido em frente e desenvolvido os dons que desenvolveram, realizado as coisas que realizaram, mesmo que a cultura não estivesse "encomendando" algo do tipo?



Que o espírito de uma cultura tem esse poder de criar e nutrir seus ídolos é algo bastante compreensível. A pergunta que fica no ar é: e o que faz o espírito de uma cultura mudar? O que faz certos valores serem celebrados numa época e rejeitados em outra?




Isso provavelmente é resultado de uma série de fatores, impossíveis de serem todos rastreados. Desde eventos globais - como uma guerra, o 11 de Setembro, que mudam a percepção das pessoas sobre o mundo ou sobre uma determinada cultura; revoluções na ciência, na tecnologia, que mudam os hábitos das pessoas, como o surgimento das redes sociais, etc. Acontecimentos políticos, econômicos... E até a influência de indivíduos especiais - desses que conseguem ir contra a cultura e apresentar um novo jeito de agir, de pensar.




Outro fator relevante é a dinâmica que existe entre uma geração e a geração seguinte. Quase sempre uma nova geração irá rejeitar os valores da geração anterior, e o motivo disso talvez seja o fato de que a maioria das pessoas se torna desiludida na vida adulta - e tende a culpar a cultura de sua infância pelos seus problemas e frustrações. Por exemplo: se você cresceu numa época onde a cultura celebrava ambição e individualismo, e se torna uma pessoa infeliz na vida adulta, provavelmente você irá educar seus filhos de maneira diferente, suprimindo esses valores. E seus filhos, quando se tornarem adultos e desiludidos, irão rejeitar os valores sob os quais você os criou, e buscar algo ainda diferente. Essa dinâmica impede que os valores dominantes de uma cultura permaneçam no topo por muito tempo - mesmo quando são valores positivos.




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Por onde andam os Michael Jacksons dos dias de hoje? Por que nunca mais fizeram um filme como Apertem os Cintos, O Piloto Sumiu (como questionou recentemente Judd Apatow)? Esses artistas estão todos por aí, tentando se adaptar à cultura atual (e realizando coisas piores do que poderiam realizar), ou então cruzando com você pelas ruas, indo pra trabalhos comuns, onde eles acham que serão melhores recompensados.




As sementes pra todo tipo de talento e habilidade existem em todos os momentos, em todas as épocas e regiões. Mas se a cultura não "regar" essas sementes, elas dificilmente terão estímulo pra crescer e atingir o máximo de seus potenciais.



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