As Religiões da Liberdade*
As Religiões da Liberdade*
Publicado originalmente em 22 de Janeiro de 2006, às 18:35
Por Acauan
Liberdade de religião é um assunto muito batido.
Por isto, hoje vou falar da religião da Liberdade, ou melhor, das religiões da Liberdade.
A Liberdade, no caso agora, não é aquele atributo associado à autodeterminação do indivíduo, que tanto apreciamos e sem o qual não seríamos quem somos.
Falo do bairro da Liberdade, o charmoso enclave oriental no centro de São Paulo, nossa Chinatown, onde podemos caminhar entre um monte de lojas que vendem quinquilharias chinesas e descobrir nas entrelinhas desta vulgaridade o antigo espírito da cidade, onde muitas nações convivem e formam uma única.
Mas o assunto aqui não é a colônia oriental, japonesa (a maioria), chinesa e coreana que ocupa o espaço entre a Praça da Sé e o começo do Cambuci (quem não é de São Paulo nem queira saber onde é isto).
Para o observador da religião aqueles quarteirões em torno do antigo Largo da Forca, hoje Largo da Liberdade, são um tesouro antropológico.
Meus filhos gostam de andar por lá, por isto, vez por outra circulo por aquelas bandas para ver vitrines que exibem katanas fabricadas em linhas de montagem e outros souvenires tão autênticos quanto uma nota de três dólares.
Mas o legal mesmo é topar com as versões nipônicas daqueles estereótipos de pregadores religiosos com os quais cruzamos (ou evitamos) no nosso dia a dia.
Eles estão todos lá, mas pitorescamente recriados no clima do bairro. Orientalizados, digamos assim.
Comecemos pelas Testemunhas de Jeová.
A lembrança primeva que tenho desta seita é a de seus pregadores de campo, batendo de porta em porta para avisar que o mundo ia acabar qualquer dia destes, entre amanhã e o dia em que morresse o último sei-lá-quem que tava vivo em 1914 (não olhem para mim, perguntem para eles o que significa isto).
O notável é que desde então passei a acreditar que aqueles pentelhos de maletinha e revistinha na mão tinham algum poder mágico, pois quando eles apareciam na esquina, faziam desaparecer todo mundo que tava na calçada, lavando seus carros na manhã de domingo (quem não é de São Paulo não queira entender isto também).
Bem, resumindo, Testemunhas de Jeová são inconvenientes e orgulhosas disto.
Exceto as da Liberdade.
Os nipônicos e descendentes cooptados pela seita (também não me perguntem por que japoneses ou nisseis se tornam TJ's) se limitam a oferecer suas duas publicações oficiais, A Sentinela e Despertai, simplesmente exibindo silenciosamente as revistas para os passantes na calçada.
Para os orientais, o ato de abordar diretamente alguém é demasiado agressivo, optando a turminha da Torre de Vigia com olhos puxados por um método mais sutil, condizente com os padrões locais.
Que façam escola. Ou que desistam. O que vier primeiro.
Mas minha melhor descoberta nestas andanças (se pudesse patenteava) é um pregador evangélico japonês (ou chinês, ou coreano, sei lá... mas acho que é japonês ou nissei), que fica no finalzinho da feirinha da Liberdade, com um cartaz enorme escrito em vária línguas e caracteres (incluindo japonês, chinês, coreano, hebraico e árabe, ou coisa parecida, já que só posso julgar pelo formato dos desenhinhos), que com um ridículo chapéu onde se lê "Jesus Salva" passa o tempo sentado num banquinho cantando hinos evangélicos em japonês (acho...).
Do que li no cartaz, nas partes em português, espanhol e inglês, é só aquela balela de sempre que, resumindo, diz "creia em Jesus ou queime no inferno por toda a eternidade".
Fico imaginando se alguma vez na História da Humanidade tal estratégia de conversão funcionou com alguém.
Comigo não deu certo.
Mas já que estamos nas cercanias da feirinha da Liberdade e, portanto, do Largo que, como disse, hoje leva o nome do bairro, mas ficou famoso pelo laço que estrangulava os tidos como malfeitores em tempos de outrora, impossível deixar de falar da Capela da Santa Cruz dos Enforcados, também conhecida na cidade como Igreja das Almas.
Oficialmente é uma igreja católica romana.
Para mim é um mistura de castelo do Conde Drácula com Terreiro de Umbanda onde se rezam missas nas horas vagas.
Não fica bem para um guerreiro Tupi dizer isto, mas se tem um lugar que me metia medo era aquele troço, com certeza o lugar mais sinistro de São Paulo (cemitérios inclusos).
De dia a visitei várias vezes, motivado por meu irresistível instinto de observador. Depois da meia noite eu preferia não passar nem perto.
E olhem que hoje ela tá reformada e até simpatiquinha, pintada em tons pastéis.
Por décadas a capela foi um prédio cinzento, muito parecido com a mansão da família Adams, cujas lendas urbanas falavam das almas dos enforcados que faziam ponto no local, principalmente as dos inocentes que foram condenados em processos injustos.
Estas crenças folclóricas transformaram o velário anexo em um centro de peregrinação sincrética, onde umbandistas, Candomblecistas, espíritas kardecistas que jamais admitiriam isto e católicos romanos que acham que mal não faz, vão lá acender velas para pedir às almas enforcadas saúde, emprego ou que a amante do marido engorde trinta quilos.
Para terem uma idéia do ambiente de sincretismo que ronda a vizinhança da Igreja, da última vez que passei por lá uma vendedora ambulante vestida de baiana me ofereceu um saquinho de pipocas. Quem conhece o bê-a-bá da Umbanda sabe o que significa isto.
E tem os Seicho-No-Iê.
Nunca soube bem qual era a base filosófica desta seita.
O engraçado é que os membros dela sabem menos que eu.
Na Liberdade eles são o único grupo religioso de origem oriental que dão as caras na calçada, possivelmente porque budistas e xintoístas não se prestam a este papel ridículo.
Convivi com muitos Seicho-No-Ie.
Uma das coisas que sinceramente me incomodavam é o fato que viviam rindo, mesmo que nenhuma piada tivesse sido contada.
Um dia inquiri um dos adeptos sobre o porquê de tanta iniciativa hilária automotivada e tive por resposta que, para ele, a vida era uma comédia...
Acho que nunca vou me converter a religião nenhuma, mas se tivesse que fazer uma lista daquelas às quais não quero pertencer, os Seicho-No-Iê estariam no topo. A idéia de parecer um completo idiota aos meus próprios olhos não é exatamente meu ideal de vida. Sem querer ser ofensivo com os Seicho, que são gente boa, é coisa minha...
Ah é...,
Tem os sete deuses da felicidade.
Daikokuten (Deus do paraíso), Ebisu (Deus da prosperidade nos negócios), Benzaiten (A Deusa da arte e da música), Bishamonten (Deus da guerra), Jurojin (Deus da longevidade), Hoteiosho (Deus da previsão), Fukurokuju (Deus da sorte).
São sete figurinhas simpáticas, parecidas com duendes, mas que têm algo a ver com as tradições xintoístas e taoístas.
As representações destes sete deuses na forma de estatuetas e gravuras eram tão freqüentes nas vitrines das lojas (em meio à toda aquela éca Made In China ou Made in PRC, como querem os envergonhados), que chamaram minha atenção.
Meu favorito é o Fukurokuju, um carequinha muito parecido com o Cabeça de Ovo, o vilão interpretado pelo Vicent Price na antiga série bufa do Batman dos anos sessenta.
A Liberdade é legal, suas luminárias e portais mereciam uma mão de tinta, mas continua um local único. O bairro tem um lugar saudoso em minhas memórias de épocas passadas quando freqüentava as livrarias de lá que, sei lá por que, sempre tinham uma peixaria nos fundos. Tempos em que, em boa companhia, brincava de contar japonês na Liberdade. Ganhava quem contasse mais.
Coisas de São Paulo.
Onde muitas nações convivem e formam uma única.
E grande.
* Dedicado em homenagem ao 452º aniversário da cidade de São Paulo.
Publicado originalmente em 22 de Janeiro de 2006, às 18:35
Por Acauan
Liberdade de religião é um assunto muito batido.
Por isto, hoje vou falar da religião da Liberdade, ou melhor, das religiões da Liberdade.
A Liberdade, no caso agora, não é aquele atributo associado à autodeterminação do indivíduo, que tanto apreciamos e sem o qual não seríamos quem somos.
Falo do bairro da Liberdade, o charmoso enclave oriental no centro de São Paulo, nossa Chinatown, onde podemos caminhar entre um monte de lojas que vendem quinquilharias chinesas e descobrir nas entrelinhas desta vulgaridade o antigo espírito da cidade, onde muitas nações convivem e formam uma única.
Mas o assunto aqui não é a colônia oriental, japonesa (a maioria), chinesa e coreana que ocupa o espaço entre a Praça da Sé e o começo do Cambuci (quem não é de São Paulo nem queira saber onde é isto).
Para o observador da religião aqueles quarteirões em torno do antigo Largo da Forca, hoje Largo da Liberdade, são um tesouro antropológico.
Meus filhos gostam de andar por lá, por isto, vez por outra circulo por aquelas bandas para ver vitrines que exibem katanas fabricadas em linhas de montagem e outros souvenires tão autênticos quanto uma nota de três dólares.
Mas o legal mesmo é topar com as versões nipônicas daqueles estereótipos de pregadores religiosos com os quais cruzamos (ou evitamos) no nosso dia a dia.
Eles estão todos lá, mas pitorescamente recriados no clima do bairro. Orientalizados, digamos assim.
Comecemos pelas Testemunhas de Jeová.
A lembrança primeva que tenho desta seita é a de seus pregadores de campo, batendo de porta em porta para avisar que o mundo ia acabar qualquer dia destes, entre amanhã e o dia em que morresse o último sei-lá-quem que tava vivo em 1914 (não olhem para mim, perguntem para eles o que significa isto).
O notável é que desde então passei a acreditar que aqueles pentelhos de maletinha e revistinha na mão tinham algum poder mágico, pois quando eles apareciam na esquina, faziam desaparecer todo mundo que tava na calçada, lavando seus carros na manhã de domingo (quem não é de São Paulo não queira entender isto também).
Bem, resumindo, Testemunhas de Jeová são inconvenientes e orgulhosas disto.
Exceto as da Liberdade.
Os nipônicos e descendentes cooptados pela seita (também não me perguntem por que japoneses ou nisseis se tornam TJ's) se limitam a oferecer suas duas publicações oficiais, A Sentinela e Despertai, simplesmente exibindo silenciosamente as revistas para os passantes na calçada.
Para os orientais, o ato de abordar diretamente alguém é demasiado agressivo, optando a turminha da Torre de Vigia com olhos puxados por um método mais sutil, condizente com os padrões locais.
Que façam escola. Ou que desistam. O que vier primeiro.
Mas minha melhor descoberta nestas andanças (se pudesse patenteava) é um pregador evangélico japonês (ou chinês, ou coreano, sei lá... mas acho que é japonês ou nissei), que fica no finalzinho da feirinha da Liberdade, com um cartaz enorme escrito em vária línguas e caracteres (incluindo japonês, chinês, coreano, hebraico e árabe, ou coisa parecida, já que só posso julgar pelo formato dos desenhinhos), que com um ridículo chapéu onde se lê "Jesus Salva" passa o tempo sentado num banquinho cantando hinos evangélicos em japonês (acho...).
Do que li no cartaz, nas partes em português, espanhol e inglês, é só aquela balela de sempre que, resumindo, diz "creia em Jesus ou queime no inferno por toda a eternidade".
Fico imaginando se alguma vez na História da Humanidade tal estratégia de conversão funcionou com alguém.
Comigo não deu certo.
Mas já que estamos nas cercanias da feirinha da Liberdade e, portanto, do Largo que, como disse, hoje leva o nome do bairro, mas ficou famoso pelo laço que estrangulava os tidos como malfeitores em tempos de outrora, impossível deixar de falar da Capela da Santa Cruz dos Enforcados, também conhecida na cidade como Igreja das Almas.
Oficialmente é uma igreja católica romana.
Para mim é um mistura de castelo do Conde Drácula com Terreiro de Umbanda onde se rezam missas nas horas vagas.
Não fica bem para um guerreiro Tupi dizer isto, mas se tem um lugar que me metia medo era aquele troço, com certeza o lugar mais sinistro de São Paulo (cemitérios inclusos).
De dia a visitei várias vezes, motivado por meu irresistível instinto de observador. Depois da meia noite eu preferia não passar nem perto.
E olhem que hoje ela tá reformada e até simpatiquinha, pintada em tons pastéis.
Por décadas a capela foi um prédio cinzento, muito parecido com a mansão da família Adams, cujas lendas urbanas falavam das almas dos enforcados que faziam ponto no local, principalmente as dos inocentes que foram condenados em processos injustos.
Estas crenças folclóricas transformaram o velário anexo em um centro de peregrinação sincrética, onde umbandistas, Candomblecistas, espíritas kardecistas que jamais admitiriam isto e católicos romanos que acham que mal não faz, vão lá acender velas para pedir às almas enforcadas saúde, emprego ou que a amante do marido engorde trinta quilos.
Para terem uma idéia do ambiente de sincretismo que ronda a vizinhança da Igreja, da última vez que passei por lá uma vendedora ambulante vestida de baiana me ofereceu um saquinho de pipocas. Quem conhece o bê-a-bá da Umbanda sabe o que significa isto.
E tem os Seicho-No-Iê.
Nunca soube bem qual era a base filosófica desta seita.
O engraçado é que os membros dela sabem menos que eu.
Na Liberdade eles são o único grupo religioso de origem oriental que dão as caras na calçada, possivelmente porque budistas e xintoístas não se prestam a este papel ridículo.
Convivi com muitos Seicho-No-Ie.
Uma das coisas que sinceramente me incomodavam é o fato que viviam rindo, mesmo que nenhuma piada tivesse sido contada.
Um dia inquiri um dos adeptos sobre o porquê de tanta iniciativa hilária automotivada e tive por resposta que, para ele, a vida era uma comédia...
Acho que nunca vou me converter a religião nenhuma, mas se tivesse que fazer uma lista daquelas às quais não quero pertencer, os Seicho-No-Iê estariam no topo. A idéia de parecer um completo idiota aos meus próprios olhos não é exatamente meu ideal de vida. Sem querer ser ofensivo com os Seicho, que são gente boa, é coisa minha...
Ah é...,
Tem os sete deuses da felicidade.
Daikokuten (Deus do paraíso), Ebisu (Deus da prosperidade nos negócios), Benzaiten (A Deusa da arte e da música), Bishamonten (Deus da guerra), Jurojin (Deus da longevidade), Hoteiosho (Deus da previsão), Fukurokuju (Deus da sorte).
São sete figurinhas simpáticas, parecidas com duendes, mas que têm algo a ver com as tradições xintoístas e taoístas.
As representações destes sete deuses na forma de estatuetas e gravuras eram tão freqüentes nas vitrines das lojas (em meio à toda aquela éca Made In China ou Made in PRC, como querem os envergonhados), que chamaram minha atenção.
Meu favorito é o Fukurokuju, um carequinha muito parecido com o Cabeça de Ovo, o vilão interpretado pelo Vicent Price na antiga série bufa do Batman dos anos sessenta.
A Liberdade é legal, suas luminárias e portais mereciam uma mão de tinta, mas continua um local único. O bairro tem um lugar saudoso em minhas memórias de épocas passadas quando freqüentava as livrarias de lá que, sei lá por que, sempre tinham uma peixaria nos fundos. Tempos em que, em boa companhia, brincava de contar japonês na Liberdade. Ganhava quem contasse mais.
Coisas de São Paulo.
Onde muitas nações convivem e formam uma única.
E grande.
* Dedicado em homenagem ao 452º aniversário da cidade de São Paulo.
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Comentários
Mas o mundo não acabou em 1914 e a coisa foi enrolando (Russell morreu em 1916) e aí criou-se o mito da vinda invisível. Cristo viera sim em 1914, mas invisível. Percorreu toda a Terra em busca de alguma igreja ou grupo religioso que seguisse fielmente os ensinamentos bíblicos. E por estranha coincidência, o grupelho em Nova Iorque liderado agora pelo John F. Rutherford após a morte de Russell era o único que ele aprovou...
Baseado no texto que diz que "esta geração de forma alguma passará até que todas essas coisas aconteçam", veio o mito de que a geração que viu os acontecimentos de 1914 duraria até a vinda do fim do mundo. E estabeleceram ainda que tal visão incluía compreensão de causa e por isso sua demarcação começava pelos que tinham 15 anos ou mais.
Porém o tão aguardado fim do mundo em 1975 falhou. Em 1985 a tal "geração que não passaria" já estava praticamente extinta e então mudaram a interpretação: os bebês, antes excluídos, agora entraram na contagem. Mas passavam os anos e nada do fim do mundo chegar. Então agora a tal geração finalmente SUMIU. Agora não é mais uma geração literal e sim "um período de tempo indefinido".
Toda essa palhaçada teológica só me faz rir, mas outra coisa não: a violação do princípio da liberdade religiosa. Se um TJ por alguma razão, que seja só por vontade própria, desistir de pertencer a esse grupo, então ele se torna um pária para a turma TJ. Seus amigos de antes nem podem cumprimentá-lo. Seus parentes não podem também falar com ele. Nem mesmo seus pais, filhos, irmãos, esposa. No máximo dos máximos, podem tratar de negócios estritamente necessários. Será que caberia alguma ação judicial contra tal exigência?
Isto deve explicar o aparente declínio dos TJ's, pelo menos na minha observação.
Salões do Reino, antes comuns, agora me parecem bem raros.
E a maioria dos que batem de porta em porta tão da meia idade para cima, devem ter perdido o apelo para recrutar jovens.
Eu costumava atribuir isto à concorrência da miríade de facções evangélicas que, com estabelecimentos para todos os tipos e gostos e com presença marcada em cada esquina, tava ganhando a briga por fiéis e dizimistas.
Mas é possível que até entre eles estes repetidos adiamentos do fim do mundo já tenham enchido o saco.
Difícil...
O conceito de Liberdade Religiosa se aplica estritamente a usar de meios coercitivos para impedir alguém de praticar uma determinada religião.
No caso os TJ's que botam seus apóstatas na geladeira podem alegar que eles tem o direito de se relacionar com quem quiserem e bem entenderem e o mesmo vale para as escolhas de com quem não se relacionar.
Isto poderia ser considerado questão legal se utilizados meios ilícitos como abuso de poder econômico por exemplo.
E faz tempo que não tem nenhuma guerra mundial para alimentar paranóias apocalípticas...