Simbolismo e Filmes Interpretativos

O filme Mãe! de Darren Aronofsky trouxe à tona a discussão sobre o uso de simbolismo no cinema. Já apontei na minha crítica do filme por que não gosto desse tipo de simbolismo, mas aqui vão mais algumas observações (e no final, a opinião da Ayn Rand sobre o tema):



Primeiro há aquilo que apontei no texto Virtudes e Tipos de Filmes - um filme não deve depender de um manual externo pra fazer sentido, um "guia de usuário", ele deve tentar ser o mais universal e "auto-contido" possível - não deve esperar que o espectador tenha lido entrevistas com o diretor ou tenha qualquer tipo de conhecimento externo específico pra funcionar.




Um artista que tem respeito pelo espectador não o deixa no vácuo (pelo menos não por muito tempo). Não o abandona numa narrativa confusa, tediosa, guardando o "ouro" todo para si e para aqueles poucos que conheçam seu segredo. Os que fazem isso são apenas os pretensiosos e mal intencionados, que desejam exibir suas supostas "inteligências" às custas da plateia - fazendo ela se sentir inferior, sem confiança na própria mente.



Claro, nem todo filme precisa ser entregue inteiro mastigado pro espectador. Pelo contrário, alguns dos melhores filmes são aqueles que mais exigem de nossa inteligência e percepção. Há um grande prazer em poder descobrir algo sozinho assistindo a um filme, fazer uma conexão surpreendente, desvendar o significado abstrato por trás dos acontecimentos, das técnicas usadas pelo artista, etc. Mas o cineasta honesto e bem intencionado quer que o espectador tenha o prazer de descobrir as coisas por si só. E faça isso através da obra, não do Google. Ele sabe que ninguém na sala de cinema é vidente, tem bola de cristal, portanto, ele irá se comunicar racionalmente, deixando "pistas" concretas na obra que possam levar a uma interpretação válida. O cineasta que é de fato inteligente, maduro, não tem interesse em esconder suas virtudes do público, tornando impossível de entender o que ele está pensando. Os que gostam de fazer isso em geral são os pseudo-intelectuais, aqueles que não têm nada pra mostrar, e por isso "tornam suas águas turvas para que pareçam profundas".




Do ponto de vista do espectador, é preciso também haver uma motivação pra que ele queira decifrar o significado por trás desses filmes mais interpretativos. Ele precisa ter razões suficientes pra acreditar que aquilo que o autor está ocultando é uma ideia valiosa que merece ser investigada. E pra isso, o filme tem que ter sido brilhante já num nível primário, superficial. Quando você assiste 2001: Uma Odisséia no Espaço e as coisas começam a ficar surreais mais pro final, você já viu tantas ideias originais, tanta inteligência e consistência ao longo do filme, que se torna irresistível querer entender o significado por trás desses outros eventos menos compreensíveis. O cineasta já ganhou sua confiança. Agora, se um filme é repleto de personagens vazios, clichês, diálogos tolos, cenas desagradáveis, e não te diz nada de realmente bom num nível primário, por que você iria imaginar que aquilo que o cineasta está ocultando é justamente o que torna o filme genial? Seria como uma pessoa se vestir como um mendigo, ser estúpida com os outros, cheirar mal, e depois reclamar que ninguém quis se aproximar pra descobrir o verdadeiro gênio por trás daquela aparência.


Há alguns casos de filmes mais abstratos / surrealistas que eu gosto, mesmo sem entender a mensagem total da história. Isso acontece quando a experiência narrativa é intrinsecamente prazerosa, e também quando o filme é brilhante tecnicamente, demonstra conteúdo em outros aspectos (na construção dos personagens, nos diálogos, na direção das cenas individuais, etc), de forma que ele não dependa de uma explicação total em termos de trama pra ter valor. Alguns cineastas conseguem fazer isso de maneira talentosa, como David Lynch, Lars von Trier, ou mesmo o já citado Stanley Kubrick. Voltando ao exemplo de 2001 - mesmo que você não entenda o feto gigante flutuando no espaço numa primeira assistida, nada vai te tirar o prazer audiovisual que o filme proporciona, ou o trecho da missão para Júpiter, por exemplo (o confronto com o HAL-9000, etc) que é um deleite em si, independentemente do que você conclua no fim. Diria que até diretores como Luis Buñuel, Andrei Tarkovsky (esse último um dos mais obscuros de todos os cineastas) têm coisas brilhantes em alguns de seus filmes que os tornam respeitáveis apesar de excessivamente interpretativos.




Se eu passei 2 horas tendo prazer, admirando valores e vendo um talento real na tela, eu não me importo de voltar pra casa com algumas perguntas no ar. E também não me importo que o diretor inclua algumas idiossincrasias suas na obra, se ele for bem intencionado e brilhante o bastante pra merecer isso. Mas se a experiência é incompreensível, sem riquezas evidentes, e ainda por cima desagradável, tediosa, com personagens horríveis, uma visão de mundo maligna, daí não há mensagem oculta que possa transformar isso em algo bom.



Os melhores filmes só adicionam camadas mais abstratas à história depois que ele já garantiu valor pro espectador num nível mais básico - quando ele já tem uma narrativa envolvente, uma linha de interesse sólida que funcione por si só. Você pode assistir O Iluminado apenas como um filme simples de terror, torcendo pra que Danny e Wendy escapem vivos dos fantasmas, e você pode assisti-lo depois mais 10 vezes tentando decifrar seus elementos mais misteriosos. Independentemente da explicação para os eventos, o filme tem um sentido básico, projeta valores cena após cena, te envolve, constrói ótimos personagens, tem cenas fantásticas, ação, suspense, um clímax satisfatório, etc.



Esses princípios valem pra qualquer elemento subjetivo / surrealista / simbólico que possam surgir num filme - tudo aquilo que fuja de propósito de um nível de comunicação direta com o espectador.


AYN RAND SOBRE SIMBOLISMO - trecho do livro The Art of Fiction




Simbolismo é a concretização de uma ideia em um objeto ou em uma pessoa representando essa ideia.




Um exemplo de escrita simbólica são as Moralidades (uma forma de teatro medieval). Assim como contos de fadas apresentam a fada boa e a fada má, as Moralidades apresentam conceitos morais através de figuras humanas, como uma Justiça personificada ou uma Virtude personificada. As figuras não representam características (como na ficção Romântica); elas representam as abstrações em si, como uma espécie de arquétipo Platônico. Essa é uma forma rudimentar de drama, mas legítima desde que o simbolismo seja apresentado de forma clara.




O Médico e o Monstro é simbólico na medida em que formas físicas representam um conflito psicológico - o Monstro sendo um símbolo do mal psicológico.




A única regra absoluta no uso de simbolismo é que o símbolo seja legível; de outra forma, a técnica se torna uma contradição em termos. Isso se aplica também a simbolismos criados internamente em uma obra, que não sejam símbolos num sentido mais amplo. Meu uso do sinal do dólar em A Revolta de Atlas é um exemplo: eu estabeleço seu significado, e mais tarde, quando faço referência a ele, eu o faço nessa base. Da mesma forma, quando escritores de histórias religiosas usam a cruz, fica claro o que a cruz representa. Mas quando autores começam a apresentar todo tipo de triângulos e pirâmides cortadas no meio, e ninguém sabe o que isso significa, isso sai fora dos limites da propriedade racional. Pegue Kafka, ou qualquer um desses modernistas; se ninguém sabe o que os supostos símbolos representam, não se pode nem chamar isso de simbolismo.



Quando no final da segunda parte de A Revolta de Atlas, Dagny segue Galt em direção ao nascer do sol, isso é simbolismo. É um símbolo até banal, mas tão apropriado que era legítimo. Literalmente, ela está seguindo seu avião no fim da noite, e pelo local da ação ele teria que estar indo em direção ao oeste (algo que planejei com bastante antecedência). Simbolicamente, ela tinha estado no escuro ao longo de toda a história, mas agora ela está prestes a ver o nascer do sol - e a primeira luz surge das asas do avião de Galt.



Usar o nascer do sol, ou qualquer forma de luz, como um símbolo de algo bom ou de revelação é um clichê, mas é um clichê da mesma forma que é o amor: é tão amplo e fundamental que você não tem como evitá-lo. O que vai tornar o seu uso disso um clichê ou não, é se você traz alguma originalidade para o assunto.



Não é um bom método introduzir sequências simbólicas numa história que em geral é realista. Por exemplo, alguns livros têm sequências de sonhos feitas pra serem simbólicas, mas que acabam sempre ficando confusas. É uma má mistura de técnicas. Ela não pode ser justificada, pois destrói a realidade da história. (Isso é apropriado, no entanto, em musicais. Em musicais, vale tudo, a única regra sendo a imaginação.)

http://profissaocinefilo.blogspot.com.br/2017/10/simbolismo-e-filmes-interpretativos.html

Comentários

  • O texto cita "2001", mas também temos "Matrix" e outros, onde você pode se divertir sem culpa com a história, mas também pode procurar por significados ocultos para, por exemplo, o conflito entre Neo e o Agente Smith. Ou divagar sobre as pílulas vermelha e azul.

    Criticam o cinema brasileiro porque só as comédias e filmes mostrando pobreza e violência fazem sucesso, mas acontece que o resto é obscuro, sem sentido, como se o autor quisesse mostrar como é profundo e a culpa é sua se não entendeu. Como se os cineastas estivessem fazendo filmes para mostrar uns aos outros e dane-se o público.

    Na verdade, isto também acontece com cineastas europeus como Godard, Antonioni ou Ingmar Bergman.
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