A América não é uma democracia

Por que, afinal, a América, país que é o próprio protótipo do que é chamado modernamente de “democracia”, usa um sistema de votos, nas palavras de Dukakis, “anacrônico” e que “deveria ter sido extinto há 150 anos”: o Colégio Eleitoral, que permite resultados como os de Bush e Trump, presidentes não eleitos pelo voto popular?


A resposta é um pouco mais inquietante do que o esperado para nossas tão bem consolidadas definições, que usamos rotineiramente para as acusações mais graves, como de alguém não aceitar a democracia ou agir de maneira anti-democrática. A bem da verdade, para entendermos o que acontece no mundo, precisamos rever os conceitos e palavras que usamos todos os dias para reaprendermos seu significado quase do zero.


A democracia na América




Apesar do uso vulgar da palavra, cuja maré subiu até a classe política e intelectual, tratar democracia como sinônimo de “justo” e “bom”, graças à idéia de “representatividade”, é algo estranho à história intelectual ocidental. O uso que a palavra teve por ao menos 23 séculos, entre Sócrates e Locke, é justamente o inverso.


Desde A República, de Platão, há uma divisão entre governos conforme quem tem poder (cria leis, decide etc). Dois são conhecidos: se um manda, pelo bem geral, é uma monarquia. Caso contrário, temos uma tirania. Se poucos mandam, pelo bem geral, é uma aristocracia. Se apenas pensam em si próprios, é uma oligarquia. Já se muitos mandam, há uma complicação moderna. Caso pensem no bem comum, temos uma politéia, conceito que os romanos, que formalizaram o sistema em instituições, chamaram de res publica.


Se cada um pensa apenas em si próprio, temos uma… democracia. Exatamente o contrário do que esperamos, com o uso moderno do termo (revivido pelos iluministas). A bem da verdade, nem sequer possuímos uma diferenciação conceitual: para nós, se muitos votam, o sistema é o mais perfeito e deve ser defendido por si.



A falta de conceito é tão gritante que “democrático” é hoje usado simplesmente como sinônimo para qualquer coisa com a qual alguém concorde. Hoje é comum que discussões políticas já comecem com ambos os lados acusando o outro de não serem democráticos. Democracia, a rigor, é apenas quando muitas pessoas decidem, não importando qual seja a decisão. Se qualquer número acima de 50% das pessoas concordar, por exemplo, em matar os outros 49%, temos uma democracia em ação. A politéia/res publica é justamente um impedimento ao poder da maioria simples.


Comentários

  • A América, sua idéia e sua Constituição foram moldadas por alguns dos maiores intelectuais políticos do mundo: os Founding Fathers, grandes homens que liam Platão, Aristóteles e os maiores clássicos da ciência política, e estavam preocupados justamente em criar uma terra de liberdade, longe dos absolutismos e monarquias corruptas da Europa. A maior preocupação dos Pais Fundadores era justamente como criar um sistema que não recaísse na tirania, tão logo o ânimo dos homens daquela época se fosse.


    Contrários à monarquia inglesa, leitores vorazes dos clássicos, como Marco Aurélio ou Cícero, a América foi criada como uma “república”. Atentos à distinção em mente, é praticamente impossível encontrar, nos textos daqueles homens admirados e defendidos pelos séculos (George Washington, Thomas Jefferson, John Adams, Patrick Henry e outros), alguma palavra a favor de uma “democracia”. Pelo contrário. Em diversos momentos, mostram verdadeiro medo de seu país, livre de uma monarquia, acabar virando uma democracia.


    A popularização da palavra “democracia” na América merece um estudo à parte, mas a obra de Tocqueville, A democracia na América (que trata, justamente, de entender por que o que chama impreciosamente de “democracia” na América é tão diferente do modelo europeu das revoluções de 1789 e 1848), foi uma das principais responsáveis. A preocupação dos Founding Fathers, antes da sanha iluminista da guilhotina, do Terror e de Napoleão (homem que confirmou o temor de todos sobre o poder da maioria sem freios), era justamente em evitar uma democracia.



    A distinção adotada foi simples. Inspirados na República Romana, que sempre tinha um contrapeso para cada poder (como o sistema de dois cônsules), criaram todo o seu sistema político, incluindo a forma de escolha eleitoral, com algum impedimento ao poder da maioria simples – a democracia tão defendida hoje.


    A República (tanto Romana, quanto das cidades italianas no início do Renascimento, quanto a Americana) determina algumas leis que não podem ser mudadas pela maioria. A América, aliada ao liberalismo clássico (economia liberal, conservadorismo político), instituiu ainda um governo mínimo. A grita hoje por criação de “direitos”, e “direitos” específicos dados por políticos, é o retorno do modelo democrata puro, em que não há a mesma lei para o governante e o governado obedecerem: os direitos dados exigem um político capaz de criar leis maiores do que uma lei imutável.


    Mas o modelo da República Americana ideado pelos Founding Fathers impediu, até hoje, todos os ataques ao rule of law, ao que chamamos, para uma realidade completamente distinta, de “Estado de Direito”, e manteve, por séculos, sua estrutura praticamente inalterada, com algumas poucas emendas. A nossa democracia brasileira (que não é República, e nem Federativa, apesar do nome), a cada quarto de século exige uma nova revisão completa.


    As regras anti-maioria da República Americana são claras. Para se emendar a Constituição, são necessários dois terços dos votos em ambas as casas legislativas, ou dois terços de legislaturas estatais para se propor uma emenda, e ainda se requer três quartos de legislaturas estatais para ratificação.

    A própria idéia de haver duas casas legislativas (modelo bicameral exportado para diversos países onde ele não encontra azo para sua aplicação de facto) é para evitar o poder da maioria. Cinqüenta e um senadores podem impedir o poder de 435 deputados e 49 senadores. Por outro lado, o presidente pode vetar o poder de 535 congressistas. Já com dois terços de ambas as casas, o Congresso pode dar o troco e se sobrepor ao veto do presidente.

  • Checks and balances: um poder vigia o outro. Apesar da macaqueação da democracia brasileira, e de várias outras pelo mundo, nenhuma nunca chegou nem perto da divisão de poderes da República Americana.


    Neste sentido, os nomes dos partidos na América, apesar de originalmente não terem nascido com isto em vista, são os mais reveladores e honestos já vistos no mundo: os Republicanos estão, via de regra, buscando defender uma Constituição com contrapesos de poder e seguir a lei, enquanto os Democratas estão tentando obter a maioria para, com ela, mudar esta lei.


    Exatamente para evitar que uma minoria de estados, mas com maioria de eleitores, decida o rumo de todo um país maior e mais populoso do que toda a Europa, ou todo o Brasil, é que também há o Colégio Eleitoral, instituição de complexo funcionamento, onde os eleitores votam em quem vai votar no Colégio, que então vota no presidente.


    Sem o Colégio Eleitoral, toda eleição, de um país continental com 300 milhões de habitantes, seria decidida pela Pensilvânia, Massachusetts e Nova York no começo de sua história, e hoje, por Nova York, Miami e Los Angeles. É difícil crer que tais pessoas, por mais que sejam as que mais aparecem na TV, entendam realmente dos problemas do Arkansas, do Havaí e do Michigan.


    É fácil simplesmente acusar tais pessoas de “racistas”, “machistas”, “brancas” e “sem escolaridade”, sem perceber que sem esses “rednecks” Nova York morreria de fome, e que os ricos habitantes de Manhattan, preocupados com “feminismo” e “transgêneros”, dificilmente agüentariam uma noite no Maine ou na Carolina do Norte para descobrir como eles é que são “privilegiados”.


    Bem ao contrário do que sempre ouvimos, a América não é uma democracia: é um sistema muito mais avançado e poderoso, uma república. O Brasil, mesmo tendo “república” no nome (e mesmo que as duas palavras, na linguagem vulgar moderna, tentem significar o mesmo), é uma democracia onde basta convencer a maioria para transformar qualquer desejo próprio em lei sobre os demais.


    Quando falam em “democracia” americana (e a expressão é quase uma unanimidade hoje), estamos falando em algo errado. Estamos diminuindo a América. Sempre com o vezo de acreditar que a palavra “democracia” deve ser defendida imediatamente, crendo que sem a maioria pura só há a tirania. Como diversos exemplos na história mostram, e nosso PT não é exceção com sua “democratização”, nada pode ser mais afastado da realidade e ter conseqüências mais perigosas para tantas vidas.

    Adaptado de: http://sensoincomum.org/2017/01/21/america-nao-e-uma-democracia/
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