Pessimismo / Universo Malevolente

Um artista pessimista ou com um Senso de Vida Malevolente é aquele que transmite em suas obras as crenças de que o universo é hostil à vida humana, de que somos impotentes, não temos como conquistar aquilo que desejamos na Terra, que a felicidade é inatingível, que o homem é mau por natureza, que ele é determinado por forças externas e não tem livre arbítrio, que a essência da vida é sofrimento, conflito, desentendimento, frustração, sacrifício, etc.


Já disse aqui em diversas postagens por que eu prefiro artistas com um Senso de Vida Benevolente, mas ainda não tentei argumentar por que eu acho que a ideia de Universo Malevolente está de fato errada e deve ser rejeitada na arte.


Pra começar, é preciso constatar que o universo não é alguém e não tem uma intenção própria; ele não é nem malevolente nem benevolente, e sim indiferente à vida. Se você cresceu acreditando num Deus bondoso que está o tempo todo cuidando dos seus interesses, a noção de que o universo na verdade é indiferente ao homem pode soar como pessimista, mas não deveria, pois a expectativa original é que deveria ser questionada. A pergunta a ser feita na verdade é: o homem é equipado para viver na Terra e ser feliz? E aqui podemos começar a discutir a questão.



Meu primeiro argumento contra o Universo Malevolente é a constatação de que, se o universo fosse de fato hostil à vida, ela simplesmente não existiria aqui. Se a vida surgiu na Terra há bilhões de anos e persistiu até hoje, isso já é uma indicação de que o planeta é favorável a esse tipo de fenômeno. Claro, nos primeiros estágios, a vida na Terra não deveria ser nada "fácil", pois os organismos ainda não tinham tido tempo pra se adaptar perfeitamente às condições do planeta. Por outro lado, eles também não tinham uma consciência desenvolvida nem a capacidade de sofrer além daquilo que podiam suportar, então mesmo nesse estágio a vida não deveria ser "trágica".


O que nos leva ao argumento da evolução: depois de bilhões de anos vivendo nesse planeta e nos moldando a ele, hoje em dia podemos dizer que já somos altamente compatíveis com o mundo ao nosso redor. Pra perceber isso, basta começar a refletir sobre coisas triviais... Por que, por exemplo, o Sol não é 5 vezes mais brilhante, a ponto de nos deixar cegos se saíssemos de casa durante o dia? Bem, porque nossa visão se desenvolveu levando em conta a existência do Sol, portanto se ele fosse 5 vezes mais brilhante, nós teríamos hoje em dia um órgão diferente, que toleraria a luz do dia sem dificuldades. Isso pode ser aplicado a todos os aspectos da vida. Claro, você pode se perguntar: por que parir um filho é tão doloroso? Por que existem doenças? Seriam essas dificuldades necessárias? A resposta é que existem sim dificuldades e aspectos em que a vida poderia ser melhor para nós, mas apenas dentro de um certo limite. Todos esses incômodos precisam ser relativamente pequenos - os aspectos positivos da vida precisam necessariamente compensar os negativos na maioria dos casos, pra explicar o fato de que, apesar de tudo, ainda estamos aqui.



Há também o argumento do livre arbítrio: a partir do momento que o homem desenvolveu uma faculdade racional, passou a ter controle sobre seus atos, procriar deixou de ser um instinto incontrolável, e sim uma decisão baseada em seus desejos, convicções, planos de vida, etc. Portanto, se a felicidade fosse de fato inatingível, se tudo o que víssemos ao nosso redor fosse miséria, dor, seria lógico concluir que colocar uma nova vida no mundo seria visto como um ato de crueldade. O simples fato de estarmos aqui até hoje é uma prova de que, ao longo dos milênios, a vida foi positiva o bastante para os nossos ancestrais pra que as eles achassem que gerar filhos fosse algo bonito, justo, trouxesse esperança, felicidade, etc.



Mais uma observação sobre a evolução: imagine 2 raças de primatas há milhões de anos atrás... Uma biologicamente condenada a sofrer, a ter uma existência terrível, a ter diversos tipos de dores insuportáveis, a viver em terror, etc... E uma outra raça que vive mais em harmonia com o mundo e tem uma relação positiva com a vida. Qual das 2 teria mais probabilidade de se procriar, florescer e estar aqui até hoje?



Claro, apesar de tudo, ainda existem inúmeros indivíduos infelizes, casos trágicos, pessoas para as quais a vida parece não valer a pena. A questão a ser levantada aqui é: o que essas pessoas desejam ao produzir arte? E o que os espectadores desejam ao consumir esse tipo de arte?


O que me leva ao argumento final, que é o da contradição.

Comentários

  • Como disse na postagem O Que Nos Atrai à Arte?, a arte é importante para o homem porque ela "nos oferece um escape pare um universo compreensível, seguro, benevolente e com significado; um universo adaptado para o nosso bem estar e nossa felicidade. Não digo "escape" no sentido de covardia, auto-enganação. Mas no mesmo sentido de que uma casa é um "escape" do frio, do desconforto, de predadores e ameaças externas - algo que nos dá uma estrutura favorável à vida (que não é automaticamente garantida pela natureza)."



    Sim, a vida é feita de positivos e negativos, e existe sempre a possibilidade de dor, morte, etc. De fato, se não existisse o negativo, conceitos como felicidade perderiam totalmente o sentido. Isso não significa que a vida é trágica, e nem que nós devemos vivenciar uma dose equivalente de positivos e negativos no nosso dia a dia pra podermos valorizar o positivo. Basta o conhecimento inevitável de que o negativo é uma possibilidade para que possamos desejar e aproveitar o positivo. Naturalmente, o ser humano deseja ficar no lado positivo da vida o máximo que ele puder - e a arte é uma das ferramentas mais poderosas pra gerar essa experiência de Universo Benevolente.

    Do ponto de vista do criador, a contradição é outra. Como disse na postagem Filmes Bem vs. Mal Intencionados, "todo artista que realiza uma obra e a expõe para o público está, admitindo ele ou não, querendo expressar seu próprio valor, e ao mesmo tempo querendo a aprovação do espectador; agradar algum público."



    Ou seja, tanto ao criar arte quanto ao consumi-la, nós já estamos automaticamente rejeitando a premissa do Universo Malevolente em algum nível. O artista por estar exercitando suas virtudes, produzindo algo, desejando se expressar, se comunicar com o público, ser reconhecido e valorizado, ter sucesso, o que é uma confissão de que ele tem esperança de extrair algo positivo de sua existência. E o espectador por estar admitindo que ele acha prazeroso contemplar um universo simplificado, reorganizado de acordo com os valores de outra pessoa, que ele deseja fugir da monotonia de sua rotina pra vivenciar algo estimulante criado por um artista, etc.


    Se alguém estivesse 100% comprometido com a ideia de Universo Malevolente, ele cometeria suicídio muito antes de realizar uma obra de arte. E mesmo que realizasse, sua completa falta de desejo de se comunicar, de exercitar suas virtudes, de ser reconhecido, de criar beleza, produziria algo tão repulsivo e sem valor que nem os espectadores "malevolentes" iriam querer consumir. Os pessimistas autênticos são aqueles que já pararam de buscar valores na vida, de criar qualquer coisa, e estão muito longe das galerias de arte e dos tapetes vermelhos.



    Portanto obras com um Senso de Vida Malevolente só costumam existir na medida em que elas são contraditórias, inconsistentes. Pois por um lado, o artista está te dizendo que a vida não vale a pena, que o ser humano não tem livre arbítrio, é imoral, medíocre, etc. Por outro, ele está perseguindo seu sucesso pessoal ao criar a obra, espera que o espectador o admire, seja tocado e inspirado pelo que ele criou (usando o seu próprio livre arbítrio), etc. E o espectador que diz gostar desse tipo de obra, só a consome porque ele extrai algum tipo de prazer distorcido dela. Enquanto a mensagem da obra pode ser que a vida é uma tragédia, tem que haver algo na obra que na prática esteja provocando sentimentos positivos no espectador - ele está apenas fingindo aceitar a noção de Universo Malevolente, enquanto na realidade está tendo seu tipo particular de Universo Benevolente reafirmado (a ideia de que a vida é trágica pode trazer pra ele um senso momentâneo de conforto, por exemplo, por sugerir que ele não tem culpa por suas frustrações pessoais, que ele é apenas vítima de uma realidade injusta, etc - o que eu não considero uma função saudável da arte).


    Ou então a pessoa pode associar pessimismo a virtude, e buscar no Universo Malevolente um falso senso de autoestima (por achar que pessimismo é sinônimo de sofisticação, intelectualidade, maturidade, masculinidade, etc) - como alguém que enche o corpo de piercings, tatuagens horríveis, afia os dentes, tenta se parecer com um verdadeiro monstro, mas que na realidade é tão vaidoso e desejoso de aceitação quanto alguém que se enche de plásticas pra ficar sexy - apenas menos honesto.



    Ou então a pessoa está apenas buscando atenção, como a criança que força o choro pois sabe que assim conseguirá o carinho dos pais.
  • Quer o artista seja realmente pessimista ou seja apenas um farsante buscando prestígio, atenção, tentando parecer cool, o fato é que uma obra de arte pessimista só pode cair nessas 2 categorias: ou ela é parcialmente desonesta, imatura, inconsistente e está no fundo querendo inspirar algo de positivo no espectador (o que é a grande maioria dos casos), ou ela é de fato malevolente, incompatível com a felicidade humana, e não deve ser consumida.



    Já com o Senso de Vida Benevolente, não precisa haver contradição alguma. A obra pode estar em plena harmonia com as verdadeiras intenções do artista e com as necessidades do público.

    Isso quer dizer que só há lugar pra unicórnios e arco-íris na arte? Óbvio que não. Muitos artistas abordam temas negativos mas de maneira honesta, bem intencionada, extraindo algo de positivo do material, sem negar suas reais intenções nem ser mal intencionados em relação ao espectador. Você pode mostrar indivíduos maus sem glamourizar o mal em si, nem sugerir que o homem é perverso por natureza. Pode mostrar tragédias específicas sem sugerir que a vida como um todo é uma tragédia, que a felicidade é inalcançável. Pode criticar um aspecto da cultura, uma parcela da população, mostrar uma sociedade decadente, mas sem sugerir que não há nada que se possa fazer a respeito disso. Pode retratar o negativo, mas sugerir uma saída, uma alternativa, proporcionando uma experiência enriquecedora para o público.



    Você pode até dizer certas coisas pessimistas de forma explícita e mesmo assim "se safar", desde que em sua atitude você esteja comunicando o oposto (já disse aqui algumas vezes que cineastas como Woody Allen e Lars von Trier às vezes caem nessa categoria - o pessimismo declarado deles acaba sendo anulado pelo fato de que eles criaram um enorme entretenimento para o público, produziram uma obra de grande beleza estética, vitalidade, etc - entre o que uma pessoa diz e o que ela de fato faz, sempre dê mais atenção para o que ela faz).

    Você pode estar se perguntando "se eu não acho que nem o Lars von Trier transmite um Senso de Vida Malevolente de fato, quem então poderá transmitir?". Descobrir as verdadeiras intenções por trás de uma obra nem sempre é tão simples e óbvio. Todo o contexto tem que ser levado em conta. Um toque malevolente num filme da Disney, por exemplo, pode ser muito mais deprimente e destrutivo do que 2 horas do Woody Allen tendo crises existenciais. Se um motorista estressado te mostra o dedo do meio na rua, esse ato tem um peso. Agora se você está no Magic Kingdom e o Mickey faz isso, a mesma atitude tem um outro impacto. No mundo da música isso é ainda mais sutil - eu diria que a Adele, por exemplo, tem um Senso de Vida mais benevolente do que a P!nk, embora ambas costumem falar sobre problemas amorosos, desilusões, etc. Enquanto a Adele mantém certa inocência em sua desilusão, a expectativa de ainda viver uma relação harmoniosa no futuro, ser plenamente feliz (você poderia imaginá-la numa comédia romântica onde ela sofre o filme todo mas no fim encontra o príncipe encantado), a P!nk já parece ter abandonado qualquer expectativa de uma vida feliz, e se conformado com o fato de que relacionamentos são feitos de conflitos, desentendimentos, e não há muito o que possamos fazer a respeito disso (o que não significa que você não possa admirá-la como performer, etc).


    Você pode estar se perguntando "se eu não acho que nem o Lars von Trier transmite um Senso de Vida Malevolente de fato, quem então poderá transmitir?". Descobrir as verdadeiras intenções por trás de uma obra nem sempre é tão simples e óbvio. Todo o contexto tem que ser levado em conta. Um toque malevolente num filme da Disney, por exemplo, pode ser muito mais deprimente e destrutivo do que 2 horas do Woody Allen tendo crises existenciais. Se um motorista estressado te mostra o dedo do meio na rua, esse ato tem um peso. Agora se você está no Magic Kingdom e o Mickey faz isso, a mesma atitude tem um outro impacto. No mundo da música isso é ainda mais sutil - eu diria que a Adele, por exemplo, tem um Senso de Vida mais benevolente do que a P!nk, embora ambas costumem falar sobre problemas amorosos, desilusões, etc. Enquanto a Adele mantém certa inocência em sua desilusão, a expectativa de ainda viver uma relação harmoniosa no futuro, ser plenamente feliz (você poderia imaginá-la numa comédia romântica onde ela sofre o filme todo mas no fim encontra o príncipe encantado), a P!nk já parece ter abandonado qualquer expectativa de uma vida feliz, e se conformado com o fato de que relacionamentos são feitos de conflitos, desentendimentos, e não há muito o que possamos fazer a respeito disso (o que não significa que você não possa admirá-la como performer, etc).
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    Não há nada cool, inteligente ou maduro em exibir um pessimismo autêntico na arte. Em geral, isso prova apenas a imaturidade do artista, falta de auto-conhecimento, desonestidade sobre suas reais intenções, ou então revela um espírito machucado, deprimido, que deveria ser tratado em vez de emoldurado e celebrado.

    http://profissaocinefilo.blogspot.com/2017/12/pessimismo-universo-malevolente.html
  • O Universo é indiferente, as coisas são do jeito que são "porque sim", sem que nenhuma entidade tenha decidido nada.

    Nós é que ficamos procurando explicações, propósitos e sentido. Nós é que criamos expectativas ou desanimamos de conseguir alguma coisa.
  • Mais de 90% das espécies que habitaram o planeta foram extintas .
    Não sei de esse planeta é bom para a vida .
     
  • Fernando_Silva escreveu: »
    O Universo é indiferente, as coisas são do jeito que são "porque sim", sem que nenhuma entidade tenha decidido nada.

    Nós é que ficamos procurando explicações, propósitos e sentido. Nós é que criamos expectativas ou desanimamos de conseguir alguma coisa.

    Me lembrou Rick e Morty:

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