Mao e o grande salto para a fome: um catálogo de horrores

Entre 1958 e 1962, 45 milhões de chineses morreram de fome. Foi uma consequência direta do “Grande salto para frente”, uma espécie de programa de aceleração do crescimento da China, implementado por Mao Tse Tung e o Partido Comunista Chinês. No papel, era um plano excelente, que levaria o país a sobrepujar economicamente qualquer nação do Ocidente em menos de 15 anos. Na prática, foi uma tragédia de dimensões continentais, com um custo inestimável em sofrimento e vidas humanas - não em decorrência de uma guerra ou de uma catástrofe natural, mas das decisões equivocadas de um governo que falava em nome da igualdade e da justiça social - e que desqualificava sistematicamente (quando não punia severamente, com a prisão ou o exílio em campos de trabalho forçado) qualquer pensamento dissidente.



Apesar de relativamente pouco discutida e praticamente ausente dos livros didáticos de História, a grande fome chinesa foi uma das maiores catástrofes que o mundo já conheceu, seguramente o capítulo mais sombrio da História da República Popular da China. Só recentemente o período gerou uma literatura de investigação confiável, na qual seguramente se destaca “A grande fome de Mao – A história da catástrofe mais devastadora da China” (Record, 532 pgs. R$ 84,90), de Frank Dikötter, professor catedrático na Universidade de Hong Kong - ao lado do já clássico, mas ainda inédito no Brasil, “Hungry ghosts”, de Jasper Becker, lançado em 1996. A estimativa de Becker era mais conservadora: “apenas” 30 milhões de chineses teriam morrido de fome.



Em 2008, pouco antes das Olimpíadas de Pequim, Dikötter teve acesso aos arquivos do Partido Comunista, nos quais pesquisou em primeira mão centenas de documentos com registros meticulosos da fome decorrente das reformas econômicas e sociais de Mao. Era um verdadeiro catálogo de horrores, incluindo casos de canibalismo em aldeias de diferentes regiões da China: não foram isolados os casos em que camponeses desenterravam cadáveres de parentes para comer; comer ratos, cascas de árvore e terra era rotineiro. Enquanto isso, a propaganda oficial vendia a imagem de um povo feliz e de uma economia próspera. Na verdade, além de apresentar uma enorme ineficiência econômica, a China estava altamente endividada com a União Soviética de Stalin, a quem Mao pedira ajuda logo após o triunfo da revolução. Mas, sempre que algo dava errado e era impossível esconder, o grande timoneiro logo arranjava culpados à direita - e perseguia ou matava os inimigos do povo que estavam boicotando as metas do regime comunista.


“A fome tomou dimensões muito além do que se pensava anteriormente”, escreve Dikötter. “Os especialistas estimavam a catástrofe demográfica entre 15 e 30 milhões de mortes. Com as estatísticas compiladas pelo próprio Gabinete de Segurança Pública na época, descobre-se uma calamidade muito maior: pelo menos 45 milhões de mortes prematuras entre 1958 e 1962. Mas não é simplesmente a extensão do número de mortos que conta, mas também como essas pessoas morreram. Não é que as pessoas morressem de fome porque não havia comida disponível. A comida era, na verdade, usada como uma arma para forçar as pessoas a cumprirem as tarefas atribuídas pelo Partido. E as pessoas que eram consideradas como de direita ou conservadoras, as pessoas que dormiam no serviço, que estavam muito doentes ou enfraquecidas para serem obrigadas a trabalhar se viram sem acesso à cantina e morriam mais rapidamente de fome. Pessoas fracas ou os elementos considerados como inaptos pelo Partido foram, portanto, deliberadamente levados à fome.”



Segundo o autor, o Estado chinês adotou a violência extrema como norma para impor a criação de grandes comunas agrícolas, nas quais homens e mulheres vivam em casas separadas e perdiam o controle da criação de seus filhos. Até cozinhar dentro de casa era proibido. Obrigados a falsificar números da produção e a entregar todo ao Estado o grão que produziam, os camponeses eram literalmente privados de comida - e de forças para reagir. Outro fator considerável foi a crença incondicional em Mao e no PC chinês, resultado de uma lavagem cerebral intensa e sistemática. “Tudo foi coletivizado”, escreve Dikötter. “Muito rapidamente o paraíso utópico provou ser um enorme quartel militar. A coerção e a violência eram as únicas formas de garantir que as pessoas executassem as tarefas que lhes eram ordenadas pelos membros locais do Partido.”



A fome foi apenas a face mais medonha do projeto de poder maoísta. No mesmo período da Grande Fome, 2 a 3 milhões de pessoas foram torturadas até a morte ou executadas, por discordar das diretrizes do partido - ou por terem roubado um punhado de grãos ou uma batata para comer. Muitas outras morreram de exaustão ou foram vítimas de abusos mortais das autoridades. Nos registros oficiais do PC chinês é citado o caso de um homem, na província de Hunan, que foi forçado a enterrar vivo seu filho de 12 anos, por ter roubado grãos; o pai morreu de desgosto poucas semanas depois. Outro registro diz respeito a uma mulher obrigada a entregar a filha adolescente a um burocrata em troca de dois pedações de pão; essa mulher se matou.



Hoje a versão do partido comunista chinês é que a grande fome ocorreu devido a condições ambientais. O governo alega, além disso, que morreram apenas 15 milhões de pessoas - e chama o período de “O difícil período de três anos”.

http://g1.globo.com/pop-arte/blog/maquina-de-escrever/post/mao-e-o-grande-salto-para-fome-um-catalogo-de-horrores.html

Comentários

  • E isso pouco ou nunca é ensinado nas escolas.
  • SERTAUZEN disse: E isso pouco ou nunca é ensinado nas escolas.

    E Mao ainda é cultuado na China.

    Deviam ensinar às crianças que ele tinha um monte de doenças venéreas e transava com virgens acreditando que isto o curaria.
  • editado December 2018
    Toda a produção agrícola tinha que ser entregue ao governo. Quem fosse apanhado vendendo por fora era preso.
    O país só começou a sair do buraco quando as autoridades passaram a fingir que não viam esse comércio proibido.
    Mais tarde, acabaram legalizando a livre empresa.

    O povo sofria lavagem cerebral e praticamente tinha que decorar o "Livro Vermelho dos Pensamentos de Mao".
    O pior é que levavam a sério. Uma mulher, depois de velha, contou que tinha vergonha de ter denunciado uma amiga por tê-la visto namorando, o que era proibido.
  • Para os nossos esquerdistas, isso tudo é mentira dos capitalistas. Jamais o Grande Timoneiro errou. Se houve algum problema de fome na China neste período, a culpa é do zamericanus...
  • Li ainda nesse ano, gigante, tem muita informação sobre o tal Grande Salto Adiante.
    Pensem numa quantidade inimaginável de merdas.
    Os caras não faziam absolutamente nada que tivesse bons resultados, cheguei a me sentir mal com a quantidade absurda de estupidez que resultava em mortes.
    Se havia algo extremamente estúpido a ser feito, eles faziam. Não chegaram a cerca de 50 milhões de mortos com pouca coisa errada, foi preciso muita burrice.
Entre ou Registre-se para fazer um comentário.