Para que um debate se justifique, é preciso assumir uma realidade comum onde ambas as partes possam extrair observações compatíveis e uma racionalidade similar que permita a elas dar coerência, de forma satisfatoriamente reconciliável, a tais observações.
Se a premissa de conservadores for a de que o processo cognitivo do progressista é tão degenerado que ele apenas produzirá conclusões virulentas de um conjunto de observações, a própria tentativa de debater é irracional e deve ser evitada. E se a premissa de progressistas for a de que a realidade é tão diversa e relativa a ponto de acomodar observações completamente incompatíveis para diferentes observadores, idem.
Na visão conservadora que eu defendo, é verdade que o progressista está caracterizado pela admissão de idéias inconsistentes, virulentas, imorais e etc. Eu procuro justificar da forma mais claro que consigo a natureza legítima dessas acusações, e isso costuma ofender aqueles que em certos tópicos tendem a adotar sensibilidades progressistas.
Mas esse progressista prototípico não deve ser identificado aos indivíduos de carne e osso que simpatizam ou militam por um conjunto ideológico progressista. Esses indivíduos são sempre mais complexos do que uma bandeira ideológica ou uma metodologia de análise.
O progressismo é uma falha localizada no processo cognitivo de pessoas que, nos demais aspectos de sua racionalidade, costumam ser funcionais, e às vezes até brilhantes. E não é uma falha inerente, mas quase sempre um viés programado através de certos processos educacionais. E em princípio, pode ser revertido.
Para entender como, é preciso entender o que é o progressismo e como ele aparece na história do pensamento. As mais compreensivas e diretas abordagens desse tópico foram elaboradas por pensadores como Edmund Burke (Reflections on the revolution in France), Karl Popper (The poverty of historicism), Eric Voeglin (A new science of politics) e Friedrich Hayek (The counter revolution of science).
Como eu sei que ninguém vai procurar esses livros (extremamente pesados) para ler apenas para entender onde o problema que eu me refiro aqui se encontra, eu vou fazer um resumo assumidamente precário da idéia geral. Alguns autores acima listados usam terminologias diferentes para o que eu chamo de progressismo (historicismo, socialismo, etc.), ou concentram-se em questões específicas, de maneira que eu vou usar de termos genéricos de maneira a garantir uma compreensibilidade mínima ao sacrifício da precisão. Além disso isso não é um artigo formal, eu não preciso pesquisar referências exatas e vou explicar da maneira que eu entendo o problema, sem me preocupar com frescuras.
A idéia básica é que o complexo ideológico progressista é uma fraude intelectual persistente, que subsiste das limitações da nossa compreensão dos processos históricos.
O processo de aprendizado humano atraves da experiência tem uma seta temporal epistemológica clara. Nós extraímos conhecimento das experiências passadas, reconhecendo padrões nos fenômenos observados, e criando modelos formais ou não que nos permitem projetar expectativas para certos aspectos qualitativos dos eventos futuros. No entanto essas projeções são inerentemente incertas, pois devido aos limites intrínsecos da nossa cognição, utilizamos apenas uma fração limitada da informação passada disponível para formar nosso capital epistemológico, assim como não há garantias lógicas de que o futuro seja completamente determinado pelo passado acessível, mesmo se toda informação conseqüente fosse de fato empregada. Uma nova observação seria o suficiente para falsificar o modelo. E isso é tudo que nós podemos fazer.
Quando examinada cuidadosamente, essa condição metafísica da aquisição do conhecimento praticamente determina uma posição epistemologicamente conservadora par default. A autoridade do conhecimento passado sobre as expectativas futuras, e a constante suspeita de que os métodos preditivos empregados podem, eventualmente, falhar. Para aplicações práticas, é importante aqui a questão da natureza do risco portado por inferências futuras em ambientes de incerteza, mas esse aspecto mais técnico será evitado nesse tratamento.
E é justamente essa atitude é a que dá origem ao conhecimento científico (entre outras formas legítimas de conhecimento), e apenas ela que permite que esse conhecimento seja de fato empregado para fazer as previsões de boa qualidade que o caracterizam.
Isso parece ter sido bem compreendido no estudo de processos "naturais", i.e., relações físico-químicas de complexidade relativamente baixa, onde cada uma das etapas da aquisição de conhecimento e da produção de inferências pode ser facilmente identificada, e falhas na aplicação ou nas próprias hipóteses de um modelo podem ser corrigidas.
Processos histórico-sociais, por outro lado, dependem de cadeias de causalidade muito mais complexas, e para as quais quase sempre faltam informações necessárias para que o observador possa tecer conclusões. Isso torna teorias históricas muito mais difíceis de serem falsificadas, e mesmo metodologias históricas inteiras (como o progressismo) podem subsistir por longos períodos desafiando a própria lógica da descoberta.
Isso porque a identidade comum do pensamento progressista é a exata inversão da seqüência de aquisição de conhecimento. Ele consiste em investir autoridade nas expectativas futuras e rejeitar as experiências passadas, como se a realidade fosse apenas um resultado de nosso wishfulthinking.
Ele costuma disfarçar essa evidente fraude na afirmação de que o processo racional pode conceber o futuro, e portanto justificar ações (de qualquer natureza moral) presentes apenas na racionalidade de suas conseqüências esperadas.
Isso é uma mistificação do processo racional. A razão não é um instrumento de busca de conhecimento ilimitado, com acesso ao passado e ao futuro, em contato com o espírito absoluto do conhecimento, conforme acreditava Hegel e seus seguidores. A razão é sempre limitada pelo conhecimento que foi acumulado pelas experiências já vividas. Mesmo a especulação e imaginação. O conhecimento deve ser mineirado da realidade de maneira laboriosa, se servindo do conhecimento já obtido, e sem qualquer garantia.
O aspecto parcialmente reflexivo dos fenômenos sociais, i.e. o fato de que esses fenômenos dependem tanto de circunstâncias objetivas quanto das expectativas e crenças existentes sobre tais circunstâncias e também sobre a própria estrutura de expectativas, permite que até um certo ponto certos aspectos das profecias historicistas se auto-realizem. Isso não as torna menos falsas. Esses fenômenos são sempre efeitos temporários da dissonância entre realidade e percepção geral, e em virtude disso não podem persistir por tempo indeterminado.
Mas essa complexidade inerente é suficiente para que diferentes escolas progressistas pudessem prosseguir existindo, e se proliferando, já que apesar de sua metodologia ser fraudulenta como instrumento para aquisição de conhecimento conseqüente, ela é extremamente útil enquanto que ferramenta de controle ideológico.
Isso não é difícil de entender. Na medida em que ações incompatíveis com os valores vigentes puderem ser justificadas no presente com base nas manifestas intenções para o futuro, e não na experiência destilada na tradição moral, essa teoria pode encontrar grande utilidade nas mãos daqueles que procuram aumentar seus poderes discricionários para além dos limites estabelecidos pelas instituições. Talvez o padrão comece a ficar claro agora.
O ponto é que o progressismo é uma metodologia falha, com implicações graves para a estabilidade cognitiva daquele que se sirva freqüentemente dela. Em geral o progressismo não é usado para nada de prático (exceto manipulação ideológica), mesmo por progressistas. Estes são consistemente conservadores em suas decisões individuais e conseqüentes (caso contrário estariam em sérios problemas), confundindo-se apenas ao analisar fenômenos coletivos complexos.
Essa observação confere certa esperança de que o problema do progressismo seja eventualmente sanado, quando o conhecimento já existente sobre os processos epistemológicos e sociais aqui descritos estiver suficientemente divulgado de maneira a desmacarar a fraude metodológica a qual progressistas se submetem. Essa divulgação é exatamente o que eu tento fazer nesses singelos debates.
Comentários
Claro. Conservadores não estão imunes a erros de inferência, aliás, é justamente o reconhecimento de sua falibilidade inferencial que faz deles conservadores em primeiro lugar.
Pode ser que idéias novas legítimas sejam confundidas com propostas progressistas, ou mesmo que propostas progressistas englobem elementos legítimos dentro deles.
A questão não é entre fazer ou não experimentos com idéias novas, mas sim se os riscos que esses experimentos representam são bem compreendidos e bem acomodados pelo conhecimento já existente, ou se eles são majoritariamente justificados com base em benefícios esperados pelo seu profetizado sucesso e pelo conhecimento que estará disponível apenas no futuro.