A guerra ideológica na Petrobras
Documentos revelam as tensões ideológicas da Guerra Fria na empresa antes e depois de 64. Ser de esquerda, antes, era bom. Depois passou a ser pecado
Por iniciativa de integrantes da Comissão da Verdade e valendo-se da entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, a Petrobras abriu um acervo de documentos que mostram como a empresa sofreu com as tensões ideológicas da Guerra Fria. VEJA teve acesso a eles. Os papéis revelam que a Petrobras foi um microcosmo das profundamente antagônicas visões políticas que dividiam o Brasil em esquerda e direita, entre comunistas e capitalistas, em aliados de Cuba ou dos Estados Unidos. Era a Guerra Fria manifestando-se fortemente, mesmo em um teatro geopolítico distante das armas nucleares que, de lado a lado, tinham poder de destruir o planeta algumas centenas de vezes. Antes de os militares tomarem o poder em 1964, fazia bonito perante os chefes na Petrobras quem se apresentasse como esquerdista. Depois do golpe, ser de esquerda ou líder sindical se tornou motivo de perseguição e demissão.
Os documentos demonstram que os militares agiram com rapidez contra os funcionários ligados à antiga ordem. Eles eram vistos como pessoas perigosas, que podiam prejudicar o funcionamento da empresa, desde aqueles tempos considerada estratégica para o Brasil. Alguns papéis revelam o atropelo da lei na erradicação dos esquerdistas da companhia. Uma comissão de inquérito, a CI-Petrobras, foi posta para funcionar de forma clandestina em um prédio vizinho à sede administrativa, no Rio de Janeiro. Essa comissão se encarregou de investigar empregados e aconselhar demissões.
O conjunto de documentos digitalizados e liberados pela Petrobras é composto de 131 277 microfichas, 426 rolos de microfilme, dezessete livros e catorze pastas, com dossiês, prontuários, relatórios e troca de ofícios entre a cúpula da Petrobras, superintendentes regionais e os chefes dos órgãos de informação. Depois de examinar os documentos, VEJA ouviu depoimentos de funcionários atuais e antigos da empresa e de historiadores. “O Brasil estava ativamente inserido no contexto da Guerra Fria e a Petrobras era um instrumento de poder relevante num mundo dependente do petróleo e sob a ameaça constante de guerra”, diz o historiador Marco Antonio Villa.
Sob a antiga ordem, no governo esquerdista do presidente João Goulart, a Petrobras, como quase todas as estatais e instituições do país — entre elas até mesmo as Forças Armadas —, foi dominada pelo ativismo sindical de motivação política. A empresa era peça vital nas ações orquestradas pelos esquerdistas radicais e, em consequência disso, sofria com greves e paralisações constantes. Como anotou no fim de 1964, em um relatório de 376 páginas, o general Antônio Luiz de Barros Nunes, chefe da comissão interna de investigação do governo militar: “Parecia ser mérito o empregado alardear-se esquerdista ou comunista. Afirmamos, sem hesitação, que, se mais um pouco demorasse o clima dos ‘direitos excessivos’ do homem, das injunções políticas e da influência de falsos líderes sindicais, a ruína apossar-se-ia da Petrobras”. Nunes era homem de confiança de Ernesto Geisel, que sempre esteve ligado à indústria petrolífera e, ativo integrante do grupo de militares que derrubou João Goulart, tinha forte influência sobre a Petrobras — que ele presidiria mais tarde, em 1969, e de onde só sairia em 1973, para ocupar a Presidência da República.
Em 1964, a Petrobras tinha cerca de 36 000 funcionários. Quantos e quais deles eram vistos como indesejáveis pelos generais? Para mapear os “focos de subversão”, foram destacados dezesseis alunos da Escola de Comando e do Estado-Maior do Exército. Infiltrados clandestinamente nas refinarias e fábricas, eles enviavam para a sede, no Rio, relatos sobre como viam a situação do ponto de vista da segurança e transcrições de conversas que tinham com os suspeitos. Os dados alimentavam um sistema de informação compartilhado pelas maiores patentes das Forças Armadas. Um documento revela com clareza a decisão de infiltrar agentes e agir fora do amparo da lei: “Assim, impediríamos que houvesse divulgação e publicidade em torno de nossas observações, sindicâncias, conclusões e etc.”.
Com a lista em mãos, a comissão interna de investigações começou a “limpeza”, como diziam os próprios militares nos documentos. Em seis meses, foram demitidos 516 funcionários, sob justificativas que iam de subversão a tráfico de armas, corrupção, falta de controle emocional ou desonestidade. Um funcionário demitido foi acusado de ameaçar dinamitar a casa de um diretor da empresa. Eles eram descritos como “elementos relapsos”, “aproveitadores” e “débeis mentais”.
Contratado em 1958 como assistente técnico em manutenção, Xerxes Campos, sindicalista e militante do então ilegal Partido Comunista, foi um dos primeiros demitidos da Petrobras depois de 1964. Campos respondeu a inquérito policial-militar (o então temido IPM) enquanto ainda dava expediente na Fábrica de Borracha Sintética (Fabor), operada pela Petrobras. Ali, passou 25 dias preso em uma sala igual à que servia de cela para diversos colegas dele também alvo de suspeitas. “Não sabíamos quanto tempo ficaríamos presos e a qualquer momento podíamos ser interrogados. Os militares faziam pressão psicológica e inventavam que algum colega havia nos delatado, mas era tudo um jogo para conseguir informações”, lembra Campos, hoje com 75 anos. Ele foi sumariamente demitido. Nos casos de suspeitos menos notórios, havia uma liturgia típica de regimes ditatoriais a ser seguida antes da dispensa. Em uma completa inversão do processo penal civilizado, exigia-se do acusado que apresentasse provas de sua inocência. “Não eram os militares que comprovavam a acusação. Nós é que tínhamos de provar que não éramos culpados”, diz Abelardo Rosa Santos, de 77 anos, que em 1964 era assistente de superintendente administrativo na Refinaria de Duque de Caxias. Santos foi afastado da empresa dois dias depois do golpe. Durante cinco meses, foi interrogado em diversos órgãos da repressão dentro e fora da Petrobras e chegou a ficar quarenta dias preso. “Diziam que eu fazia parte de um movimento de esquerda que eu nem conhecia.” Demitido em 1968, depois de aceitar integrar a chapa de oposição na eleição da diretoria do sindicato dos petroleiros do Rio de Janeiro, o então auxiliar de escritório Francisco Soriano saiu da Petrobras direto para a luta armada. “Eu me senti um homem marcado e, com o idealismo próprio dos 25 anos, não vi alternativa”, conta ele, agora com 70 anos. No material encaminhado pela Petrobras à Comissão da Verdade e nos depoimentos dos funcionários demitidos não existem evidências de que os investigadores tenham recorrido à violência física para obter informações.
Em 31 de março deste ano faz cinquenta anos, meio século, que os militares quebraram a ordem jurídica e constitucional para depor um governo democraticamente eleito. A tendência é que esse evento, parte integrante da história do Brasil, seja tratado como vingança — e não, como deve ser, estudado à luz das circunstâncias políticas mundiais e brasileiras naquele tempo. A iniciativa da Petrobras é, nesse contexto, um alento. Os documentos liberados pela empresa revelam fatos. E fatos não são de esquerda nem de direita. São elementos inegáveis da realidade.
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-guerra-ideologica-na-petrobras