"O Globo" 22/06/11
As religiões e o Estado
MARCO LUCCHESI
Há que defender em toda a sua extensão a liberdade religiosa. E não
apenas pelo viés do esmaecido discurso do politicamente correto,
que não passa, muitas vezes, em lábios extremistas, de mal disfarçada
intolerância. Vivemos num regime democrático que deve assegurar a
liberdade de todas as expressões.
E, por isso mesmo, estado laico, eminentemente laico, profundamente
laico, garantidor da diversidade de que é feito nosso país, como foi
discutido semana passada pelo Conselho Nacional de Justiça.
Trata-se de um fenômeno difuso e contemporâneo, o da pluralidade
religiosa, bem como o espaço de uma convivência enriquecedora,
assegurada por boa parte das constituições ocidentais. Para a
sociedade, o diálogo e a presença interreligiosa não são apenas uma
instância desejada, mas uma escola absolutamente legítima, capaz de
ensejar a admiração do Outro, na perspectiva de uma educação mais
ecumênica, mais aberta, longe do proselitismo vulgar, segundo o qual
esta ou aquela religião me torna melhor ou superior aos demais.
A figura de Louis Massignon é emblemática. Como cristão, recolhia,
durante a guerra da independência colonial, os corpos dos argelinos,
que a polícia francesa atirava ao longo do Sena. Ministrava-lhes o
rito muçulmano, porque eram muçulmanos, e não o rito cristão. Eis
aqui um pensamento admirável.
O proselitismo não salva, o proselitismo mata. E essa piedade frente
aos despojos ressuscita ao menos um corpo essencial, que é o corpo do
diálogo. Massignon não quis converter ninguém. Seu desejo era apenas
o de fazer-se amigo dos muçulmanos e prestar auxílio para que se
tornassem melhores dentro de sua própria escolha. Não como quem
ensina, mas como quem partilha e celebra a poesia da diferença.
Aí está uma inspiração para o nosso tempo, como no livro de
Paolo dall’Oglio, intitulado “Apaixonado pelo islã e fiel a Jesus”,
um dos mais belos escritos sobre a Diferença, que acaba de sair na
Itália. Compreender as razões do Outro e defendê-las. Só assim
podemos alcançar o Ocidente profundo que nos formou.
A herança do Brasil está radicada na pluralidade. Mas nem por isso
devemos fechar os olhos aos riscos do fundamentalismo. É dever
da sociedade vigiar. Não para coibir o diálogo, mas para evitar
encrespações, guetos nefandos, formas de confusão da política e da
espiritualidade.
Esta semana, no rádio, um líder religioso afirma haver ressuscitado
milhares de homens, apondo-lhes sobre o corpo o carnê da mensalidade.
Mas atenção: quitado. Sem quitação não se pode ressuscitar. O Procon
poderia mover-se dentro desse espaço?,
Outra pérola veio de uma liderança recente, em canal aberto.
Deus havia depositado na conta de um fiel o valor, não desprezível,
de quinze mil reais. Infelizmente o close da imagem mostrava que era
um valor negativo, sem que ninguém percebesse. Um deus bastardo
enganou o fiel, deixando-lhe como bênção um forte saldo devedor.
Saída muito bem-vinda para uma parcela de políticos, cujo enriquecimento
exponencial não passaria de uma generosa transferência de um deus contábil.
Passamos das loterias, como no exemplo de um deputado, que ganhara inúmeras
vezes o sorteio, para uma ilicitude de ordem teológica.
O conselho das igrejas cristãs não pode não se manifestar diante
desses fatos. Queremos todas as expressões do cristianismo, incluindo-se
também, para além das grandes religiões monoteístas, a das nações indígenas,
africanas e asiáticas. Nenhuma pode ser excluída, como não fez Massignon
junto ao Sena. A riqueza do Brasil repousa na sua história multicultural.
Não posso acreditar que o Ministério Público esteja adormecido.
A política de concessão de canais de comunicação deve garantir uma
orientação efetivamente democrática, sem favorecer qualquer religião em
particular e nem tampouco fechar os olhos aos desvarios de projetos
comerciais & religiosos tão indecentemente conjugados.
MARCO LUCCHESI é escritor.
Comentários
De tanto querer ser tudo, acabamos sendo coisa nenhuma. Deve subsistir uma linha comum que permite a coesão da sociedade.