Toda nudez será celebrada (e polemizada)
Festas que terminam com gente sem roupa no mar ou na piscina se espalham no Rio com a bandeira da liberdade de expressão
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Publicado:
27/04/14 - 7h00
Frequentadora da festa Pool Me In pula na piscina pelada no fim da edição realizada no último dia 12
Foto: Divulgação/Rodrigo Esper (I Hate Flash)
Frequentadora da festa Pool Me In pula na piscina pelada no fim da edição realizada no último dia 12 Divulgação/Rodrigo Esper (I Hate Flash)
RIO - A música está excelente, de um jeito que dá até medo de que a próxima não seja tão boa. A luz, exata. Nem escura demais que não se veja quem passa, nem clara demais que se reconheça o outro de imediato. É sábado, são seis da tarde, aquele lusco-fusco que não é dia nem noite. Não faz calor ou frio, talvez mais calor do que frio, mas não de maneira que isso vire assunto. Há um grupo de meninas girando bambolês; há outro de meninos soprando purpurina para cima; há uma moça vestindo maiô e tênis; e outra que leva asas nas costas. Não para de chegar gente. Dança-se nos corredores, nas varandas (é um casarão com piscina), no jardim. Há filas por toda parte, para o bar ou banheiro, mas ninguém parece se importar. Há casais formados neste momento, há dois minutos e há dez anos, há casais de três pessoas, há casais de quatro pessoas. A festa corre fácil, e o que falta acontecer não demora muito.
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— É só cair o sol que as pessoas começam a tirar a roupa — conta a DJ Suzana Trajano, produtora da Pool Me In, uma das muitas festas cariocas (contabilizamos ao menos dez, que reúnem de 300 a mil pessoas, com entradas a até R$ 60 reais) que, de uns tempos para cá, têm terminado com frequentadores completamente nus. — Mas não é uma nudez gratuita, é espontânea, quase performática. Não tem nada a ver com suruba. Eu diria que é uma nudez até política, pois não deixa de ser uma expressão de contestação, de liberdade do próprio corpo. Afinal, o mundo está muito careta...
Quem foi a uma das dez edições da festa Bota na Roda, que aconteceram no ano passado na Lapa, na Glória ou em Laranjeiras, viu vez ou outra uma turma de pessoas passando, nuas, apenas com espuma sobre o corpo. Quem esteve num dos ensaios do bloco de carnaval Viemos do Egyto, num casarão de Santa Teresa, no início do ano, certamente sentiu vontade de cair sem roupa na piscina como muitos dos ritmistas. Na inauguração da instalação Chuva Verão, do coletivo Opavivará, na galeria A Gentil Carioca (ainda em exibição), no Centro, teve quem tirasse a bermuda para tomar um banho de chuveiro. Quem acompanha as festas I Hate Mondays, na boate Cave, em Copacabana, sabe que quando o sol nasce os sobreviventes correm para um banho de mar despidos no Arpoador. O que se repete ao fim da festa Vulcão Erupçado. E no Leme, na Abaporu. O Baile do Sarongue, que ocupou o Parque Lage às vésperas do carnaval, findou com homens e mulheres sem fantasias na piscina do imóvel histórico. Durante a folia, o bloco Bunytos de Corpo reuniu gente que usava pouco — ou nenhum — adereço.
— É um fenômeno recente. Acredito que as referências sejam mais de festas na Europa, onde a nudez é comum. E já tinha uma festa em São Paulo com esse clima mais livre, a Voodoo Hop, que acompanho desde o ano passado e que também pode ter sido uma influência. Mas acho que o que estimulou esse movimento aqui no Rio foi a proibição do topless na praia (refere-se ao episódio ocorrido em novembro, quando a atriz Cristina Flores foi repreendida por policiais ao tirar a blusa no Arpoador, o que acabou provocando o evento Toplessaço). É uma forma que as pessoas têm de dizer: como não pode? Pode sim! — diz o DJ Vinicius Tesfon, produtor da Manie Dansante, que já terminou com frequentadores sem roupa. — O corpo não é uma ofensa, todo mundo se vê nu todos os dias. É um pessoal que levanta a bandeira da liberdade de expressão. E é uma experiência coletiva, sempre.
Na estreia da Pool Me In, dia 15 de março, quando o primeiro tirou a roupa e pulou na piscina, Suzana tomou um susto. Ela e a equipe que trabalhava no evento.
Quando os seguranças perguntaram se deviam pedir para as pessoas se vestirem, Suzana reagiu com tranquilidade. — “De jeito nenhum, agora é que a festa começou!”, eu disse a um deles. Passaram-se dez minutos, e todo mundo já estava acostumado. A noite terminou com umas 30 pessoas nuas na piscina. Também não é a festa inteira... — brinca ela.
Na segunda edição do evento (foram quatro no total), houve um concurso de saltos “ornamentados”, e o DJ propôs, ao microfone: “Quem pular pelado ganha!” Em menos de um minuto, a estudante de Publicidade Stephanie Meneghetti despiu-se e tchibum! Ganhou a disputa. Foi a largada para a nudez coletiva. Na terceira festa, o que era natural começou a parecer forçado, lembra Suzana. Segundo a DJ, chegou uma turma achando que era evento de naturismo — já perguntando onde podia guardar a sunga. Ela explicou que era uma festa de nudez incidental, não obrigatória, para retomar a espontaneidade original. Na edição realizada no fim de semana passado, o clima era tão tranquilo que o VJ até fez uma projeção (e uma provocação) em uma das paredes do casarão onde se lia: “Pode tirar a roupa!” Não foram poucos os obedientes.
— Eu estava numa festa com amigos, quis tirar a roupa e pular na piscina. Pulei — conta Stephanie Meneghetti, uma gaúcha de 22 anos. — Acho natural, essa questão moral não entra na minha cabeça. Lá em Porto Alegre já acontece em alguns eventos que frequento. Sou naturista, mas não ativista. Não tenho embasamento teórico. Mas a minha atitude é sim em prol dessa abertura do debate, acho importante contagiar as pessoas, provocar este pensamento. Somos livres quando podemos escolher o que fazer. Mas não somos: se um homem anda na rua sem camisa, tudo bem. A mulher tira a parte de cima do biquíni e é crime, “ato obsceno”.
Fotos provocaram polêmicas nas redes sociais
Quando uma de suas fotos nua foi publicada no site de cobertura de eventos I Hate Flash (os fotógrafos da equipe são autores da maioria das imagens desta reportagem), houve polêmica nas redes sociais. O pai de Stephanie ficou preocupado, achando que isso poderia prejudicá-la profissionalmente. Ela levou uma semana para contornar a situação:
— Eu não me preocupo com o que possam achar. Em nenhum momento me arrependi, pelo contrário, fico feliz que o gesto tenha rendido uma discussão. Por que o meu peito incomoda? O que me incomoda é a hipocrisia.
Engenheiro eletrônico e artista plástico, o espanhol Julio Lucio Martin, de 43 anos, vive no Rio há 12 e frequenta muitas dessas festas. Desde 2010, ele faz uma performance nos eventos em que encarna o personagem “Peladão” — chega ao local e tira a roupa, simples assim. A intervenção faz lembrar as performances do artista plástico modernista Flávio de Carvalho (1899-1973), que, além de andar nu, ou seminu, assinou em 1930 um manifesto intitulado “A cidade do homem nu”, no qual pregava uma cidade futura despida de preconceitos.
— Tirar a roupa em público requer coragem, não só porque supostamente é um ato que pode ser constrangedor para os outros, mas pela falta de costume de quem tira. Dez minutos depois, o medo desaparece, o tesão desaparece. Você esquece dos seus defeitos, e até as banhas da sua barriga desaparecem. Você se sente mais natural, como você realmente é, sem máscaras — defende Julio, que também vê no gesto uma postura política. — Meu personagem tenta fazer com que a nudez seja só um ato de conforto. Mas o meu conforto muitas vezes se converte num confronto. Sempre tem alguém que se choca. Mas também sempre tem alguém que se junta. O confronto é uma atitude política.
Outro que diz encarnar um personagem nestas festas é o arquiteto “Armando Pinto”, de 47 anos, que veio de São Paulo participar da Pool Me In:
— O nu é uma reflexão: acho a roupa a fantasia de um personagem, um dos tantos que somos. Estar num é um deles, o mais verdadeiro e divertido para mim. Mas não me considero ativista. Alguns me perguntam se estou fazendo protesto ou apresentação artística. Digo que não, é apenas a roupa que tenho vontade de usar. No caso, não usar...
Entre os que ficam nus em público, há quem não encare o ato como arte ou protesto, apenas com naturalidade.
— Fiz Belas Artes na UFRJ, e as festas dos alunos terminavam com pessoas sem roupa. Mas não acho que ninguém saia de casa para isso, pelo menos comigo não é assim. Quando você está entre amigos, se sente bem com o próprio corpo, acho natural que aconteça. No Brasil, com todos os tabus, isso ainda provoca polêmica. Mas não vejo motivo — opina o DJ e produtor Andrei Yurievitch, de 29 anos.
Andrei, que produz eventos no Rio há cinco anos, faz um panorama da cena noturna atual.
— Grupos distintos estão se encontrando em novas festas. As turmas do cinema, das artes plásticas, do carnaval, por exemplo, se juntam em locais menos óbvios da cidade — comenta ele, referindo-se à ocupação de lugares como a Praça da Bandeira ou o Morro do Vidigal. — Nos últimos anos houve uma renovação dos produtores, e surgiram propostas mais criativas, como festas ao ar livre, na piscina ou itinerantes (como a Nuvem Móvel).
Por essas características, as festas começam a atrair público de outras cidades. Modelo e designer de joias, Manuela Machado, de 29 anos, é uma das que vêm de Petrópolis sempre que pode — na Manie Dansante, pulou na piscina sem roupa.
— O clima era tão tranquilo, parecia um monte de criança correndo, brincando — conta Manuela, que faz trabalhos de nu artístico para escolas de arte, de fotografia e para a TV (o último foi num quadro musical do “Amor & Sexo’’). — Acho muito importante levantar esse debate, porque se o nu, em si, já é motivo de tabu, imagina para quem trabalha com isso, como eu? Mesmo sendo tema de toda escola de pintura e escultura, é complicadíssimo para a minha família entender. Por que o corpo nu ainda causa desconforto?
Psicóloga diz: “Todo mundo expõe o corpo o tempo inteiro, mas um topless causa escândalo”
Doutora em Psicologia, professora e coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio e autora do livro “Com que corpo eu vou”, Joanna Novaes não acredita que a nudez em ambientes descontraídos carregue todo o peso de contestação que se prega.
— O Rio tem uma moralidade curiosa. Todo mundo expõe o corpo o tempo inteiro, mas um topless ainda causa escândalo. Mas acredito que o que acontece nestas festas é menos um posicionamento político e mais uma maneira de naturalizar ou justificar a superexposição do corpo, que é tão carioca — argumenta ela, que já esteve em algumas como frequentadora. — No Rio, se você tiver um belo corpo “justifica” a superexposição. O corpo fora de padrão ainda é criminalizado. E quem tira a roupa em público, seja nas festas cariocas ou em protestos como os que ficaram popularizados no Leste Europeu, sabe que está minimamente enquadrado no padrão estético.
Foi a primeira pergunta que fez o historiador Paulo Sergio do Carmo ao ser consultado para a reportagem: “Mas são só os jovens e magros que ficam nus?” Autor do livro “Entre a luxúria e o pudor: a história do sexo no Brasil”, Paulo fuçou milhares de documentos, de 1500 até os dias atuais, para construir a história da vida privada dos brasileiros, o que inclui nossa relação com a nudez.
— É uma característica da juventude testar novidades. Principalmente as novidades em relação ao corpo. E é muito mais fácil para alguém magro tirar a roupa em público do que para alguém que está acima do peso, por isso a minha curiosidade — observa Paulo.
O historiador defende a tese de que a contestação dos padrões de comportamento está atrelada ao poder aquisitivo:
— Nos anos 60 e 70, a nudez começou a ficar popularizada em festas de universitários de classe média e alta. Com a onda hippie, estendeu-se a comunidades, como Arembepe, na Bahia. Venho notando que as manifestações de liberdades sexuais, principalmente, estão atreladas a estas classes. Há um estigma maior em relação às meninas de periferia. Vou dar um exemplo: você pode imaginar o que aconteceria se os jovens começassem a tirar a roupa em bailes funk, não? Diriam que é um atraso, que é animalesco. Da classe média para cima, as atitudes libertárias são vistas como “revolução de costumes”. Da classe média para baixo, ainda são entendidas como “degradação de costumes”.
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