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Lembra de DG? Não? Foi antes do menino morto pela madrasta, da moça linchada porque disseram que ela fazia magia negra, da manicure enterrada viva. Antes da chacina nossa de cada dia, ontem, hoje, sempre.
Foi há uns oito mil assassinatos atrás que uma bala perfurou as costas de Douglas Rafael da Silva Pereira, DG, no dia 22 de abril. O Brasil teve em 2013 passado uns 60 mil assassinatos, entre os “oficiais” e os que nem foram registrados. Está mantendo a média em 2014. Um décimo dos assassinatos do planeta acontecem no Brasil.
É duro lembrar de tanto morto. Ou ligar para mais um. Mas DG não era só mais um. Porque era dançarino em programa de TV. Sua morte rendeu protesto nas ruas do Rio. E o programa Esquenta, onde dançava, teve uma edição dedicada a ele, com presença e depoimento de globais. Carolina Dieckmann, Mariana Ximenes, Faustão, Luciano Huck, Preta Gil, por aí vai. E Fernanda Torres.
Agora DG volta ao noticiário. A perícia concluiu que a cena do crime não estava intacta. Alguém mexeu para dificultar as investigações. É mais um indício que a própria polícia está envolvida na morte de DG. Parece que uma moto de DG tinha sido roubada, e depois encontrada nas mãos da própria polícia de uma dessas Unidades Pacificadoras.
A mãe dele, técnica em enfermagem, viu o corpo e concluiu que seu Douglas foi torturado. Tinha escoriações no rosto, joelhos, cotovelos, punhos e tórax, segundo o próprio laudo do IML. Pode haver algo mais triste para uma mãe que constatar a tortura de seu filho?
Mas o que falta à polícia brasileira é… Buda.
Sério: alguém escreveu isso. Foi Fernanda Torres, quando usou o bailarino como tema para um artigo em sua coluna na Folha.
Falta ao policial brasileiro treinamento, equipamento e salário compatível com o risco. Falta educação, respeito ao próximo, limites. Se fizer seu trabalho direito, e sobreviver, se aposenta pobre. Se aprontar, não terá julgamento justo ou punição igual a de um civil qualquer. Falta, enfim, tudo.
Mas Fernanda Torres termina seu artigo dizendo que o que falta à polícia é "Buda". Foi demais para mim. A frase me inspirou a vomitar um dos textos mais brutais que já escrevi, atacando Fernanda.
Mas concluí que não tinha sentido bater em Fernanda "na física". Está completamente abaixo do meu radar. É a atriz de comédia de TV que não vejo e colunista que não leio. Li a primeira página de seu livro de pé, na livraria, e já foi demais.
O bom senso me fez segurar para publicar no dia seguinte. Vantagens dos cabelos brancos. A raiva passou, ou a maior parte. Raridade. Publico aqui no blog tudo que escrevo, de bate-pronto. Isso foi há semanas. A nova evidência sobre o assassinato de DG me força a voltar ao tema.
O artigo de Fernanda começa elogiando a democracia social carioca. "A natureza do Rio é democrática, e a praia, - limite forçoso das urges -, o lugar onde as diferenças se anulam." Exemplifica citando o convívio amigável entre a amiga atriz, Andréa Beltrão, e Maria de Fátima, moradora do morro do Cantagalo. As duas são colegas de natação no Posto 6. Andréa é colega de Fernanda no seriado Tapas e Beijos. Maria de Fátima é a mãe de DG.
Fernanda está lendo o mangá "Buda", de Ozamu Tezuka, para seu filho pequeno. O livro explica bem o sistema de castas da sociedade indiana. "Buda vem questionar a ordem suprema, ao ensinar que todos os seres são semelhantes diante da morte e do sofrimento." Fernanda diz que a coragem e a capacidade de articulação de Maria de Fátima "rompem o sistema de castas que impera no Brasil".
Apesar disso tudo, Maria de Fátima está errada, nos educa Fernanda. A mãe de DG declarou que as UPPs são uma farsa, e que a população tem mais medo da polícia que dos bandidos. Fernanda retruca: as UPPs tem que ser defendidas! Porque são "o único plano concreto de reintegração de áreas esquecidas pelo poder público surgido desde que eu me conheço por gente… a estratégia de ocupação recém-implantada deve ser levada adiante."
A atriz defende a ocupação das favelas pela PM, enquanto diz que "a percepção de que um preto pobre é inferior a um branco rico nasceu com a escravidão e contaminou todo o tecido social. Um regimento armado deste ideal deve ser combatido."
Ou seja, o Rio é democrático mas dividido em castas. Maria de Fátima está certa de atacar as UPPs, mas elas são fundamentais. A PM deve ser combatida, mas a ocupação da favela pela PM deve ser defendida.
Difícil de entender tanta contradição. Quem sabe o Buda ilumine nossa compreensão de Fernanda Torres?
Conheço bem o mangá de Tezuka, gênio com G maiúsculo. Meu nome está no expediente. Um primo, amigo de um monge budista, nos recomendou uma década atrás. Publicamos a coleção completa pela Conrad, 14 volumes. Se Fernanda leu até o final, conhece o final melancólico que Tezuka impõe a Buda - derrotado, traído, sua tribo exterminada. O pai do mangá cantou a bola. A Índia continua sendo o país mais injusto do mundo, 2400 anos após Sidarta atingir o Nirvana.
Não que falte Buda à Índia . Deve ser a única coisa que não falta por lá, tirando gente. Um terço dos pobres do mundo vivem na Índia; dois quintos da população vivem abaixo da linha de pobreza. Os que vivem pior são os de castas mais baixas. Sim, o sistema de castas segue firme e forte, milênios após Sidarta atingir o Nirvana. Fernanda deve saber.
Nos últimos tempos, ouvimos falar muito da Índia por causa de casos de violência contra a mulher e estupros coletivos (notícia de hoje: um menino foi estuprado por oito homens em Nova Delhi).
O governo indiano promete combater os estupros construindo banheiros. No país, 600 milhões de pessoas defecam ao ar livre. É a melhor oportunidade para os muitos estupros - quando as mulheres vão ao matinho fazer suas necessidades. Estupro lá só é crime quando da sua casta pra cima. As dalits, intocáveis, podem ser abusadas, e são.
A Índia está muitíssimo longe de ser uma sociedade justa. O primeiro passo para mudar a Índia é reconhecer isso. Parar de idealizar seu povo. Parar de fetichizar a espiritualidade da Índia. Parar de aplaudir a resistência dos indianos miseráveis, de celebrar o sorriso banguela dos indianos analfabetos. Reconhecer quem se beneficia da manutenção da Índia neste estado. E agir de acordo.
No Brasil, a receita é a mesma. O que falta a Fernanda Torres é a coragem moral para encarar isso. Essa turminha quer ser elite e povão ao mesmo tempo. Ter segurança privada no condomínio e frequentar o pagodinho da "comunidade". Amazônica intocada e iPhone 5. Conexão Cantagalo-New York. Cybercapitalismo bancado pelo tesouro nacional.
É uma no cravo e outra na ferradura. Total solidariedade com os que sofrem, total subserviência aos que infligem o sofrimento. É a melhor maneira de manter as coisas exatamente como estão, mantendo privilégios e pose de protesto. É a falta de caráter habitual da elite brasileira, embalada em discurso de modernidade e multiculturalismo, lição que aprenderam bem com os tropicalistas.
É um primor de desconversa o discurso lacrimoso de Regina Casé sobre DG, no Esquenta. Consegue protestar contra a violência, sem protestar contra ninguém. “Temos que parar tudo e tomar consciência do tamanho da barbárie… a gente conseguiu parar e tomar consciência para que alguma coisa mude! Para que tragédias como essa não continuem acontecendo com milhares de jovens das periferias”.
Nem um pio contra a PM. As UPPs. O governador. O prefeito. O tráfico. As milícias. Nada contra ninguém. Nada sobre o eterno mal uso do dinheiro público, que vem de impostos que todos pagamos, os pobres muito mais que os ricos. Que sempre tem outras prioridades que não os meninos que crescerão para serem DGs, para serem PMs, para serem assassinados. Os números gritam: 93% dos assassinados no Brasil são homens; 74%, pretos e pardos; mais da metade, jovens. Mas vamos garantir o dinheiro da Lei Rouanet e da Petrobras pro novo projetinho dos famosos, a peça cabeça, o show do pagodeiro, o blog da Bethânia.
O que nos falta não é Buda. Nem à polícia, nem ao resto do Brasil. O que falta é peito para brigar. Postura de enfrentamento que deveria começar por quem "faz cultura", sem rapapés para os poderosos, e sem masturbação da miséria. Mas tomar posição pode custar amigos, patrocínios, padrinhos, boiadas, bocadas. Melhor deixar como está, né?
A morte de DG, segundo Regina e Fernanda, é um crime sem culpados. Choram revoltadas: neste Brasil, somos todos vítimas! Não somos não. Uns brasileiros cometem os crimes. Alguns reagem. E outros são cúmplices.
http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2014/06/03/o-que-falta-a-fernanda-torres-oito-mil-assassinatos-depois-de-dg-nao-e-buda/
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