24 de fevereiro de 1993
Entrevista: Napoleão Mendes de Almeida
Chega de asnices
O filólogo diz que o brasileiro não sabe falar português, principalmente na TV, e que a reforma ortográfica* só serviria para alguns ganharem muito dinheiro
Okky de Souza
No posto de um dos mais respeitados filólogos e gramáticos do país, Napoleão Mendes de Almeida é daqueles interlocutores capazes de interromper uma conversa para evitar um atentado ao idioma pátrio. "Tal verbo não se flexiona assim", "Nessa frase falta uma preposição", ensina ele, com a paciência amealhada em seus 82 anos de idade. Desde 1938, quando fundou seus cursos de português e de latim por correspondência, Almeida já corrigiu milhares de alunos, que durante dois anos recebem suas lições semanais, ao preço de meio salário mínimo por mês.
Não é a única forma pela qual Almeida ajuda o país a falar e a escrever melhor. Há 56 anos ele assina a venerável coluna Questões Vernáculas em O Estado de S. Paulo - interrompida nos últimos quatro meses, segundo ele, por desentendimentos com "setores mais jovens" do jornal. O professor também assina alguns dos maiores best-sellers em sua área. Sua obra clássica, Gramática Metódica da Língua Portuguesa, está na 38ª edição (540.000 exemplares vendidos), e seu Dicionário de Questões Vernáculas, lançado em 1981, já esgotou 20.000 cópias. Ele é autor, ainda, de livros que abordam questões filosóficas, como Mensagem do Halley: Deus Não Existe, um ensaio ateísta.
Em seu escritório no centro de São Paulo, Almeida comanda seis funcionários que o auxiliam na correspondência com os alunos. Ali, em meio aos dicionários e às gramáticas que forram as paredes, espalha-se um pandemônio de recortes e laudas à espera de catalogação - um trabalho que seria facilitado por um computador, possibilidade que ele descarta. "Ainda estou à espera de alguém que me diga quais as vantagens da engenhoca", desafia Almeida, que apesar disso já aderiu às comodidades do fax. Casado pela segunda vez, pai de um filho de 26 anos, Saulo Mendes de Almeida, economista do Unibanco, o professor falou na semana passada sobre as exigências do idioma.
VEJA - Fala-se hoje um bom português no Brasil?
ALMEIDA - O país fala um português muito ruim. Chegamos a ter vergonha de construções corretas, ter receio de regências, de concordâncias.
VEJA - Onde se ouve ou lê o pior português?
ALMEIDA - A televisão é o maior veículo de erros e enganos de português que existe. Ela tem um efeito nocivo muito grande sobre o português que o povo fala. É mais difícil falar bem do que escrever - nesse caso a pessoa tem mais tempo para pensar. Só as pessoas acostumadas a falar bem deveriam lançar mão desse meio de divulgação tremendo que é a TV.
VEJA - Em que programas de TV estão os erros mais lapidares?
ALMEIDA - Até nos títulos dos programas se cometem invencionices. Há um humorístico chamado Os Trapalhões. Essa palavra não existe em português. O verbo é atrapalhar. Quem atrapalha, portanto, é atrapalhão. Por que tirar o a da palavra? Também se cometem equívocos nos noticiários, principalmente, e nas novelas. Há certos erros que me obrigam a mudar de canal. Repugna-me, por exemplo, ver um locutor de TV dizendo que se bateu um 'récorde', colocando a sílaba tônica no primeiro e. Esse locutor não é amigo do povo. Nunca tivemos essa palavra em português. É uma tontice. O certo é se pronunciar 'recórde'.
VEJA - Em que outros veículos o português é sacrificado?
ALMEIDA - Chegamos a uma situação em que nem os jornalistas sabem conjugar verbos. Tenho no meu arquivo um conjunto de erros graves de português que saíram nos jornais nos últimos tempos. Veja esta manchete do noticiário internacional, publicada em novembro de 1990: "Iraque deixará parentes visitarem reféns". Que português é esse? O certo é "visitar". Para o jornalista que intitulou a notícia, o padre Manuel Bernardes não sabe português porque traduziu o texto latino do Pai-Nosso por "Não nos deixeis cair em tentação", assim como está errada a passagem do Evangelho de São Marcos que diz "Deixai vir a mim os pequeninos".
VEJA - Na literatura brasileira de hoje a situação é melhor?
ALMEIDA - Bem, eu atualmente não sou de muita leitura. Leio revistas inglesas e francesas - sei que nelas vou encontrar os respectivos idiomas escritos de maneira perfeita. É uma prova de civismo estudar a própria língua.
VEJA - Como se reconhece o escritor que trata bem o idioma?
ALMEIDA - Autores como Alexandre Herculano e Eça de Queiroz, além de possuir uma prosa atraente, obrigam o leitor a ir ao dicionário pelo menos duas vezes por página. Isso é um ótimo sinal. No outro extremo está o escritor que se lê por 100 ou 200 páginas sem deparar com uma palavra que não se conheça, e que escreve com períodos de gago, aquele que tem dois pontos finais em cada linha. Períodos curtos não têm graça. Neles não há concatenação, não há subordinação das orações. Escritores desse tipo não conhecem as conjunções ou têm medo de usá-las porque não sabem usar o verbo de acordo com elas.
VEJA - Como falam os políticos brasileiros?
ALMEIDA - Os que falam bem são exceções, e há muito poucas. Dizia-se que Collor falava bem, mas ele escorregava, não sei se nesse meio tempo resolveu estudar gramática. Já o Lula usou uma frase muito interessante quando era candidato à Presidência. Ele dizia "Vote ni mim".
VEJA - Lula deveria estudar gramática?
ALMEIDA - Ele tentou. Lula chegou a se matricular no meu curso, mas não chegou a responder à primeira lição escrita nem pagou a segunda mensalidade. Simplesmente desapareceu. Depois de um certo tempo acabamos rasgando a ficha dele, na limpeza do arquivo. Rasguei com prazer, depois de uma greve dos metalúrgicos que deu o maior prejuízo ao país.
VEJA - O senhor também rejeita o português falado pelos sertanejos, carregado de regionalismos?
ALMEIDA - Eu respeito. Não vou interromper uma conversa para dizer ao interlocutor que o certo é dizer 'nós vamos' e não 'nós vai'. A verdade é que em termos de vocabulário há regionalismos muito interessantes. Um dia eu estava em Belém e pedi uma informação na rua, sobre onde ficava tal escola. O sujeito me disse que era fácil, que era só tomar uma sopa, aquela sopa que estava logo ali junto ao muro. Eu me espantei. Não sabia, mas está lá no dicionário - sopa é a jardineira, o ônibus local.
VEJA - O que o senhor acha das reformas ortográficas feitas periodicamente no português?
ALMEIDA - Vejo como uma forma de comércio. O interesse das reformas ortográficas é financeiro, não intelectual ou prático. Tem por fim o lucro, seja da Academia Brasileira de Letras, seja de alguma editora, seja de algum rato de ministério, como é o caso atualmente no Planalto. Certa vez o Cláudio de Souza, então presidente da ABL, esteve no meu escritório, antes da reforma de 1943, e me perguntou por que eu era contra a reforma ortográfica. Ele me explicou que a Academia tinha despesas com a impressão do vocabulário. Eu disse: meu caro, não acha que a sua resposta deve ser substituída pela reflexão de que o interesse da reforma ortográfica é de caixa, e não de ensino? O escritor interessado quer modificar a ortografia, mas o livro dele, sua gramática, com a nova ortografia, já está pronto. Em 1949, quando saiu um decretinho no Diário Oficial introduzindo a nomenclatura gramatical brasileira, um dos tratantes da comissão já estava com o livro dele, incluindo as modificações, na terceira edição.
VEJA - O acordo de unificação ortográfica entre o português do Brasil e o de Portugal, negociado atualmente pelo ministro da Cultura, Antônio Houaiss, encaixa-se nesse caso?
ALMEIDA - Faço minhas as palavras do jornalista Paulo Francis, num artigo recente. O bom dessa rusga diplomática que está ocorrendo entre Brasil e Portugal é que ela matou o acordo ortográfico do Antônio Houaiss. O Houaiss não é bobo, já admitiu que o acordo foi arquivado por tempo indeterminado. Isso porque ele é editor, paga imposto de renda pelo que edita. Qual seria o seu interesse na reforma senão ser o primeiro a dizer: "O que foi decretado ontem já está em forma de livro?" Vernáculo não é política para viver de alternativas, para alimentar-se de amizades e confrarias. O vernáculo vive de escritores, e estes não se impõem pela quantidade, senão pela qualidade de obras que expressem o belo sem protuberâncias vocabulares nem manifestação de desnutrição, de doenças gramaticais.
VEJA - A unificação da ortografia usada no Brasil e em Portugal, prevista pela reforma, não seria desejável?
ALMEIDA - Que unificação? Não existem duas línguas, apenas uma.
VEJA - Mas muitas palavras são usadas ou grafadas de forma diferente nos dois países.
ALMEIDA - E no Brasil não acontece o mesmo, de região para região? Não há diferenças prosódicas e de significação? Isso não prejudica o idioma de forma alguma. Tome-se, para efeito de comparação, o dicionário Webster da língua inglesa. Para certas palavras ele dá quatro pronúncias diferentes. Outras são mostradas com três grafias diversas. Isso é motivo para um espertalhão querer introduzir uma lei que determine uma só forma ortográfica, uma só pronúncia da palavra?
VEJA - O acordo ortográfico prevê a eliminação de vários acentos nas palavras. Isso não tornaria mais fácil a tarefa de quem escreve, lê ou estuda o português?
ALMEIDA - A acentuação no português é um horror. A ortografia de 1943 está errada, mas se forem mexer vai piorar ainda mais.
VEJA - O que há de mais aberrante na acentuação do português?
ALMEIDA - Tome-se, por exemplo, a palavra auxílio. No idioma espanhol existe essa mesma palavra, com o mesmo significado, mas ao contrário do que ocorre no português ela leva acento na forma verbal, auxilío. O motivo é simples: de cada dez vezes que essa palavra aparece corriqueiramente, talvez apenas uma seja na forma de verbo, nas demais ela aparece como substantivo. Então, nada mais lógico que se deixe o acento para diferenciar o verbo. Há mais bom senso na ortografia espanhola nesse aspecto.
VEJA - O acordo prevê também a volta das letras k, w e y ao alfabeto, assim como a eliminação do trema no u. O que acha dessas propostas?
ALMEIDA - As três letras em questão nunca deveriam ter saído do alfabeto. Precisamos delas no dia-a-dia, na matemática, por exemplo, e também na escrita comum. Quanto ao trema, é inútil, ninguém precisa dele. Na verdade, quem deve ensinar a pronúncia certa é a escola. Eu mesmo não uso acentos quando escrevo meus rascunhos. Para quê? Eu sei ler. Mas para acrescentar o k, o w e o y ao alfabeto, assim como para eliminar o trema, não é preciso fazer uma grande reforma ortográfica. Basta um decretozinho, uma lei que regule o assunto.
VEJA - As gírias atentam contra o bom português?
ALMEIDA - Não sou contra as gírias. Elas são um fenômeno normal, que revela a saúde do idioma. Elas em geral duram seis meses ou um ano. Conforme sua natureza, a gíria entra para o dicionário ou para a gramática. Por que eu investiria contra a expressão 'é sopa' quando ela surgiu? Há quanto tempo não se ouve essa expressão?
[segue]
Comentários
ALMEIDA - O neologismo é uma necessidade. Se há invenções, precisamos
dar nomes a elas. Vamos buscar esse nome com radicais e sufixos nossos,
ou com radicais gregos, latinos, ou vamos adaptar a forma inglesa,
francesa ou alemã à nossa forma. O estudo da etimologia é maravilhoso,
embora não tenha utilidade. Mas é curioso. Por exemplo: poucos sabem que
a palavra joelho - ou geolho, como se dizia antigamente -, em
português, é a mesma palavra knee, em inglês. A origem de ambas é
genunculum, em latim. A sílaba inicial ge é gutural forte, corresponde,
na pronúncia latina, ao som de k em inglês. O n já está na palavra e a
terminação unculum corresponde à nossa terminação lho ou aos dois e do
inglês. O estudo do latim é necessário. Foi uma infelicidade jogá-lo
fora do currículo escolar no Brasil, mormente para quem vai praticar
leis, estudar Direito.
VEJA - A língua portuguesa tem bons dicionários? Quais?
ALMEIDA - Prefiro não propagandear os dicionários que temos. Mas posso
elogiar o de Alberto Carlos Silva, um autor de Campinas que morreu
mocíssimo.
VEJA - Como o senhor vê as atividades da Academia Brasileira de Letras?
ALMEIDA - Sabe quantas vezes Rui Barbosa esteve na Academia? Uma única.
Euclides da Cunha nunca precisou dela. Monteiro Lobato idem. Mas há
escritores que são fregueses das academias de letras que se espalham
pelo país. A Academia não contribui em nada para a melhora do idioma.
VEJA - Desde quando o brasileiro fala e escreve mal?
ALMEIDA - Pode-se dizer que o início da derrocada da nossa língua data
de 1931. Com a Revolução de 30, introduziram-se as férias escolares de
julho. Aí ela começou a degringolar. Talvez os próprios pais tenham
provocado essa mudança, por querer descansar, mas esse descanso começou a
prejudicar o ensino dos filhos.
VEJA - Essa explicação não é demasiado simples?
ALMEIDA - Essa é uma imagem histórica que uso para ilustrar um fenômeno
que é bem mais complexo. O erro principal vai mais longe - na pobreza de
horas diárias de aula no curso primário, por exemplo. Verifique-se se
em algum país dito civilizado existem menos de oito horas de aula por
dia no curso primário. Em todo os países o aluno fica na escola oito
horas. Mas no Brasil o aluno vai à escola para comer Há também a questão
da remuneração dos professores: os que ensinam português não podem ter o
mesmo salário dos que ensinam desenho, por exemplo. Que trabalho tem um
professor de desenho? Num relance ele dá a nota para o aluno. O
professor de português tem que ler palavra por palavra, para ver se o
aluno não trocou um c por dois s, um g por j. E ao voltar à sala de aula
ele tem que chamar os alunos um por um para explicar os erros. O de
Antonio vai servir de esclarecimento para Benedito, todos se aproveitam
dos erros de todos, mas esse trabalho tem que ser bem remunerado.
VEJA - Que outras deficiências do ensino fazem com que o brasileiro fale mal seu idioma?
ALMEIDA - Existe hoje uma indústria do livro didático, comandada por
indivíduos incapazes de montar ou explorar um colégio, um curso que
seja. Esses livros didáticos não têm concorrência, contenham eles as
maiores violações gramaticais e asnices ortográficas. O professor chega
ao colégio e já encontra nas prateleiras os livros que deve usar. Quer
dizer que ele não tem competência para escolher? E quem se julgou
competente para escolher? Um interesseiro. O ensino está entregue a um
outro tipo de comércio, o das apostilas. Não se dá o texto da matéria,
apenas apostilas. E qual é o valor das apostilas no futuro? Nenhum. É
progresso encher uma classe de apostilas, de livrinhos e livrecos sem
vulto nem tomo, tão inúteis quanto desarrazoados, sem índices nem
remissões? O aluno deveria comprar o livro e o professor ter em mãos um
texto da matéria que leciona. Até há algum tempo, o professor era
obrigado a assinar um diário de aula, relatando que matéria tinha dado
naquele dia. Existe isso hoje? Não. Fala-se mau português por causa do
sistema escolar.
VEJA - Em que região do Brasil se fala o melhor português?
ALMEIDA - É difícil especificar, mas no Maranhão, certa vez, conheci um
professor que, embora muito modesto, divertia-se conversando em latim
com a filha. Isso é significativo. Oxalá um dia possamos dizer que o
Brasil todo fala uma língua disciplinada, que revele educação,
instrução, que revele um país de pessoas formadas para a sociedade.
VEJA - Estamos muito longe disso?
ALMEIDA - A distância é de pelo menos três gerações.
Fonte: http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/entrevista_24021993.shtml
* A reforma ortográfica a que ele se referia é a que entrou em vigor recentemente.
Errado. Ambas têm a mesma origem indoeuropéia. No caso do inglês, vem de "knewan", de um suposto proto-germânico. Em gótico, "kniu"; sânscrito, "janu"; em persa (avéstico), "znum" etc.