Eu queria começar esse texto dizendo que toda categoria que pretende abranger uma série de singularidades sob um único nome, como “a esquerda” ou “a direita” já é, de antemão, incorreta. Isso acontece porque a complexidade da realidade não pode ser facilmente analisada por palavras genéricas. O máximo que nós podemos fazer é tentar diagnosticar um estado de coisas, um pathos, um modus operandi. É isso que eu vou tentar fazer aqui, mas é evidente que as críticas não vão se aplicar a todo mundo que se considera esquerdista. Muitos inclusive vão concordar comigo em poucas ou muitas coisas.
Isso esclarecido, eu gostaria agora de comentar sobre um texto do Scott Alexander, um cara muito inteligente que escreve em um blog chamado SlateStarCodex. O nome do texto é “Right is the new left” (“a direita é a nova esquerda”, uma brincadeira com “x é o novo preto”). Nesse texto Alexander comenta que ele tem se sentindo gradualmente mais e mais “conservador”, mas não porque ele concorda com qualquer ideia conservadora, e sim porque os conservadores — o pessoal de direita — têm aparecido para ele sob uma perspectiva muito mais simpática que os esquerdistas. Curiosamente, entretanto, é com as ideias esquerdistas que ele concorda. Quem me conhece sabe que isso é precisamente o que tem ocorrido comigo, e é algo que acontece, também, com cada vez mais amigos meus. Pois bem, por que isso acontece? Alexander vai movimentar algumas hipóteses, eu vou comentar duas.
A primeira hipótese é medo, sobrevivência. Exemplifica ele que se, por acaso, arranjar briga com um neonazista, ele não se preocuparia muito com isso, porque removendo a possibilidade de ser assassinado, o nazi não tem muito o que fazer com ele. Isso acontece porque basicamente toda a sociedade defenderia Alexander — considerando ele um herói pelo seu posicionamento incisivo — e condenaria prontamente o nazista enquanto um ser humano horrível e violento. Não é o mesmo caso com a esquerda, dado que as poucas vezes em que ele entrou em conflito com esquerdistas resultou em um inbox repleto de ameaças de morte, discurso violento e todo mundo contra ele, que se sentiu absolutamente sozinho. Existem vários exemplos, também, de casos onde o ultraje dos esquerdistas “acabou” com a vida e a reputação de pessoas. Pra citar só um, pensem no caso de Justine Sacco, uma mulher que teve a vida efetivamente arruinada por causa de um tweet estúpido. Mais especificamente, ela fez uma piada ironizando o racismo que foi, ironicamente, considerada racista (quem quiser saber mais sobre o caso pode clicar no hyperlink acima).
A segunda hipótese é ainda mais interessante. Eu não vou explicar ela por completo porque não é minha intenção aqui, mas resumidamente, Alexander comenta que a direita se tornou a nova contracultura. Quer dizer, se nos anos 60 ser um esquerdista era algo tão significativamente radical que você poderia ser literalmente torturado e assassinado em alguns países, não é mais o caso hoje em dia. Falem o que quiser, queridos, não é. Não digo que a sociedade como um todo se tornou progressista. Todas as opressões continuam como antes, é bem verdade. A questão aqui é inteiramente outra: aqueles largamente responsáveis pelo que se entende por “cultura” (sei muito bem que essa definição de cultura é incorreta, por isso as aspas, mas ela serve ao propósito aqui), como quase todos os artistas e estudantes e professores das áreas de ciências humanas, são esquerdistas. Toda a academia e a classe artística se posicionou a favor de Dilma, não é mesmo? Enquanto isso, observa Alexander, todos seus amigos que ele pessoalmente considera os mais inteligentes estão no espectro libertário (libertarian, libertário de direita) ou mesmo conservador. Eu observo coisa semelhante. Meus amigos mais inteligentes são todos renegados do esquerdismo, enquanto eu imagino alguns esquerdistas que são extremamente populares nas redes sociais escrevendo usando um babadouro. Desculpem, eu sei que isso não é educado da minha parte, mas eu tenho ficado realmente assustado com o quanto as análises esquerdistas estão ficando progressivamente mais burras. Estúpidas, mesmo. Só que isso fica pra outro dia.
Enfim, se antigamente o esquerdismo era uma forma de rebeldia contra desde os seus pais, seus professores e mestres, sua igreja local até, finalmente, o Estado, se era uma forma eficiente de se diferenciar e afirmar sua individualidade e pensamento crítico, qual é o caso hoje em dia? Nós vivemos em um mundo em que uma piada escrota no twitter pode destruir sua vida. Se você tem a má sorte de ser um liberal em um curso de humanidades, e se tiver a audácia de dar voz às suas opiniões, é bem provável que você sofra perseguição, humilhação e assédio moral. Ser “de esquerda” não é a exceção revolucionária, é a regra básica de convivência. Ou você faz parte da seita ou a seita vai tornar a sua vida incrivelmente difícil, mas essa ficha ainda não caiu pra bastante gente.
Qualquer leitor deve ter questionado mentalmente, após esse último parágrafo, algo como: “mas e o Bolsonaro? Gentili? Feliciano? Pessoas que falam todo tipo de barbárie livremente e sem qualquer consequência”. É exatamente onde eu queria chegar. Os mestres da esquerda hegemônica só mutilam aqueles que acreditam neles, queridos. Como um monstro que só existe se você acreditar que ele existe. O fascistinha do Bolsonaro não vai ter sua vida destruída porque a sua carreira pública é baseada precisamente em escandalizar os progressistas de toda forma possível. Ele não vai perder credibilidade por ser homofóbico e machista: é por ser homofóbico e machista que ele é famoso. A esquerda não tem poder nenhum contra ele. E é aqui que entra a questão do canibalismo. A esquerda pode não conseguir levar a ruína ao Bolsonaro, mas ela com certeza consegue mastigar até os últimos ossinhos daquele cara “desconstruídão” que cola no centro acadêmico de sociais. Ele fez uma piada machista semana passada, ficaram sabendo? Pobre coitado, mal sabe o que o aguarda.
É por isso, entre outras coisas, que algumas pessoas estão abandonando a esquerda — e cada vez mais pessoas vão abandonar, podem acreditar. É um ambiente tóxico. Os americanos chamam isso de call-out culture: a cultura de denunciar publicamente falas ou comportamentos considerados opressores. Para abrasileirar, podemos chamar de “cultura da rachação”. A cultura da rachação não se trata de uma conversa privada que estabelece um diálogo sobre a legitimidade ou falta dela em determinada atitude, mas de uma exposição pública de uma falha de caráter imperdoável. Considerando que boa parte da juventude têm sua vida social organizada em torno de ambientes esquerdistas, é evidente que ser acusado de “machista”, “racista”, “homofóbico” ou qualquer coisa do tipo vai acarretar em toda sorte de desespero emocional. As pessoas raramente falam disso, mas você não tem a menor noção da quantidade de jovens que desenvolveram verdadeiros distúrbios paranoides em relação ao medo de ser “rachado”. E não, não são apenas os homens brancos, apesar de que eu não faço ideia do porquê se fossem exclusivamente homens brancos isso seria menos problemático.
A que serve, então, esse punitivismo visceral e violento que o esquerdismo pratica com os seus? Que diabos de esquerda é essa que tem todo o poder do mundo para destruir esquerdistas e absolutamente zero da potência necessária para combater Jair Bolsonaro?! Como nós chegamos até aqui, pelo amor de Deus?
É bem óbvio que, se estiverem lendo isso, uma série de pessoas já traçou toda série de justificativas. São male tears da minha parte. Iuzomismo. Bom, francamente, que seja, eu já deixei de me importar com o que essas pessoas pensam de mim faz algum tempo. Dizem eles: “existem pessoas morrendo por causa de opressões estruturais e você vem me falar do sofrimento de alguns ou algumas esquerdistas que não se preocupam em se ‘desconstruir’ o bastante e por isso sofrem?” Pois é, a questão é que nenhuma pessoa deixou de morrer por causa da sua cultura de alta vigilância e punição. A única coisa que isso tem conquistado é o afastamento de jovens do pensamento de esquerda, já que se eles souberem o que é bom pra eles, deveriam ficar bem longe desses ambientes, mesmo. Principalmente os que são privilegiados em um sentido ou outro, mas não apenas esses. O seu medidor de pureza e a sua denúncia dos impuros serve um propósito muito específico, não engane a si mesmo: aumentar o próprio poder ao diminuir o dos outros. Não, você não está preocupado com resolver a injustiça social, você está preocupado em se tornar uma figura popular, em agredir aqueles que são menores que você, dentro do seu ambiente, para demonstrar dominância. Os delírios que nós carregamos para sustentar nossa negação da realidade podem ser ótimos se nos ajudam a dormir com tranquilidade, mas quando se ignora que eles são delírios, quando nossa voracidade por grandeza e pelo estatuto angelical prejudicam os outros, aí isso deveria começar a ser repensado. Sim, exatamente como atitudes opressoras deveriam ser repensadas. Se você inverte a lógica do opressor para que ela contribua com o seu sentimento de potência, bem, você não é melhor do que ele. Se você destrata e subjuga as pessoas inferiores hierarquicamente na sua faculdade de humanas, talvez você não esteja assim tão interessado em ser “do bem”.
E o que o Mc Vitinho tem a ver com tudo isso? Explico. Mc Vitinho é um artista de funk do Rio de Janeiro. Não sei qual é a idade dele, mas aparenta ser bem novo, provavelmente pré-adolescente ou ligeiramente mais velho que isso. Tem vários Mc’s Vitinhos por aí, mas eu quero falar de um em especial: o Mc Vitinho que escreveu “Bala na Dilma Sapatão” (esse é o nome da música no youtube, ao menos).
Se você lê um título como o dessa música você imaginaria que ela foi composta por um reacionário extremamente violento, praticamente nazista, certo? Errado. Eu escolhi falar sobre essa música porque, na minha opinião, ela sintetiza boa parte do que tem de errado com a esquerda brasileira atualmente. Mc Vitinho é um moleque negro, favelado (“periférico” pra vocês que gostam de higienizar a linguagem), evidentemente marginalizado e extremamente distante de qualquer elite desse país. Aqui vai o lance genial: a música não é só uma brincadeira chamando Dilma de lésbica. Ela é uma crítica ao sistema de UPP’s. Sim. Observem comigo:
“Nós gosta da paz
Nós nunca fugimo da guerra
Seu polícia, seu peidão
vocês tudo pagando pau
Pode vim, manda exército
até a força nacional
Seus otário, vacilão
Vocês tudo perde a linha
Querendo comprar morador
Com caminhão de sardinha”
Pois é. E agora, como fica? Vitinho chama a Dilma de “sapatão”. Vitinho brinca com matar uma mulher. Vitinho chama Sérgio Cabral de “viado”. Vitinho é envolvido com o tráfico, “CV até morrer”. Vitinho, negro, favelado e verdadeiramente revolucionário. Nós compartilhamos textos contra a atuação da polícia militar. O Vitinho não, o Vitinho troca tiro com os caras. Ou mesmo que não troque, mesmo que a música seja fantasiosa, é bem óbvio que nós encontraríamos facilmente milhares e milhares de exemplos semelhantes. Como a esquerda lida com isso? Aqui nós temos algumas possibilidades. Existirão aqueles que condenarão Vitinho e a música prontamente, como um todo, por causa do teor homofóbico e machista. Outros dirão que esse teor é fruto da sua “socialização” em uma sociedade machista e patriarcal, e que o fato de sofrer determinados tipos de opressão não isenta ele de cometer tantos outros, o que não deixa de ser verdade. Os marxistas, talvez, dirão que isso é uma das contradições inerentes à vida sob o capital, e que somente a total emancipação da classe trabalhadora permitiria atravessar e superar tais contradições, através do movimento dialético.
Bom, eu sou só uma pessoa, mas pra mim tudo isso significa que a esquerda não é capaz de compreender Mc Vitinho. Não é só uma questão de socialização e também não é só dialética. É isso, vejam bem, mas não é só isso. O ponto nevrálgico esquecido pela esquerda é que Vitinho é um ser humano. E nós, seres humanos, muitas vezes somos egoístas, violentos, pensamos somente no nosso próprio interesse, cometemos erros e a memória desses erros nos movimentam, de forma fria e implacável, até o estado em que nos sentimos verdadeiramente malignos. Sentimos culpa e remorso; cólera e ódio. Somos injustos com nossos próximos e muitas vezes sequer pensamos nisso. Mas não somos só isso, nós também combatemos a injustiça, nos rebelamos contra a dominação, sentimos empatia e compaixão. Ajudamos entes queridos e até estranhos dentro das nossas possibilidades. Perdoamos e somos perdoados. Criamos e destruímos, enfim.
A esquerda parece ter esquecido disso, afinal. A esquerda, ironicamente, quer “direitos humanos para humanos direitos”. Ela não perdoa, não ensina, não compreende: ela pune, ela disciplina e ela vigia. A esquerda não se preocupa mais com nós, os pequenos e vis seres humanos: a esquerda deseja uma ordem de anjos. Mas Mc Vitinho não é um anjo, Mc Vitinho é só um adolescente. Se não for devidamente domesticado, ele não serve.
Se é assim que as coisas são, meus caros, eu irei orgulhosamente para a guilhotina com o nosso pequeno regicida. Não me incomodo se isso significar que eu sou reaça. Que o paraíso e a glória fiquem para os anjos, eu me preocupo com seres humanos.
https://medium.com/@phantasmagore/algumas-notas-sobre-a-cultura-da-rachação-27c4c1fb6b88#.benw8x7si
Comentários
― Winston Churchill
Mostram-nos que a TV Pública custa nada, mas o que tem que ser mostrado é outra coisa. O que tem que ser demonstrado não é que as excelentes Deutsche Welle e BBC só custam 0,0000x% do PIB da Alemanha e do Reino Unido. Isso todo mundo sabe.
O que tem que ser mostrado são quais os mecanismos que foram criados para que nem a Deutsche Welle nem a BBC paguem 50 vezes o valor de mercado para ex-jornalistas puxarem saco de governo e difamarem opositores com dinheiro público. Até encarar essa questão, a defesa da TV Pública vai continuar falando para convertidos.
Mas essa questão ninguém encara em público, porque todo mundo já viu o que é essa máquina de difamação em ação. Então fica todo mundo aí, argumentando que a TV Pública só custa um Big Mac por ano por cidadão, como se isso fosse convencer alguém, como se a questão fosse essa.
Que se encare o debate que importa ou que se aceite que a TV Pública vai ser abolida sem que a população dê um pio.
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