A Religião bíblica
Por Sodine Üe
Antes de qualquer coisa é preciso dizer: a Bíblia não é um livro religioso. Trata-se dum texto histórico que foi tomado como base por religiosos para fundamentar a religião cristã. Desta forma, tomá-la por livro religioso é não só uma arrogante pretensão, como ignorância. Suponhamos, por exemplo, que algum grupo religioso decida ter por base de seus cultos o Dom Casmurro, de Machado de Assis, isso não significa absolutamente que esse seja um livro religioso. Esclarecido isso, estudemos então algumas características desse texto, atentos principalmente aos questionamentos mais constantes e às suas possíveis respostas, que na maioria das vezes são mais humanas do que bíblicas.
Percebe-se de início o teor eminentemente fantástico do texto bíblico. Nota-se isso, por exemplo, na passagem em que Jesus conduz Pedro, Tiago e João ao alto dum monte e lá se transfigura diante deles. O texto (Mateus 17:3) diz: Então lhes apareceu Moisés e Elias falando com ele (com Jesus). Se analisarmos o contexto de possibilidades dessa passagem, encontraremos pelo menos uma inconsistência: durante toda a vida de Moisés não havia fotografia, nem se tem notícia de que algum pintor o tenha retratado para as gerações futuras, então como foi possível a Pedro, Tiago e João imediatamente reconhecerem-no naquele homem que lhes surge no monte falando com Jesus? O mesmo se aplica a Elias. Não obstante, nota-se essa tendência indutiva em vários outros relatos bíblicos. Quando não, o que se vê é a pretensa onisciência divina restringir-se às coerências espaciais e temporais: quando é previsto profeticamente que o Messias surgiria montado num jumentinho, essa indicação de reconhecimento é acima de tudo viável, uma vez que não se poderia ter previsto que Cristo chegaria montado numa bicicleta ou de carro (objetos que ainda não haviam sido inventados à época da profecia apesar de deus saber do presente, do passado e do futuro). O trabalho do profeta é, portanto, algo localizado, é uma tarefa baseada não na onisciência divina, mas no conhecimento daquele que era usado por deus para prever o futuro. O texto bíblico transita sempre entre o improvável, porém possível e entre o real, porém imensurável. Vejamos como exemplo disso a teoria da vida eterna.
É comum aos representantes religiosos divulgarem detalhadamente as condições através das quais se viabilizará a vida eterna concedida àqueles que forem considerados inocentes depois do Julgamento Final. E quando questionados como será possível a um ser humano viver eternamente sem envelhecer e morrer mesmo que naturalmente, a maior parte deles explica esse espetacular artifício celestial alegando que no céu as pessoas não envelhecerão e que por isso mesmo não morrerão. Tal afirmação é, principalmente, tendenciosa e justamente por isso ela assume uma aparência, mais uma vez, de ficção mística ou de contos de fada, simplesmente porque não há em parte alguma da Bíblia referência a essa espécie tão peculiar de vida eterna. Numa das raras passagens em que Jesus fala abertamente (e não por parábolas) sobre a vida no céu, ele afirma unicamente que na ressurreição nem casam nem são dados em casamento; serão como os anjos de Deus no céu (Mateus 22:30). Ou seja, não há na Bíblia referência alguma sobre essa teoria do não envelhecimento, sendo então essa não mais que uma suposição lógica criada por religiosos que apesar de se fundamentarem somente na própria Bíblia veem-se, contudo, obrigados a formular subterfúgios para preencher as lacunas que povoam esse livro. O mesmo se pode falar dos condenados ao fogo eterno do inferno. Esses mesmos representantes religiosos afirmam que o que queimará eternamente no lago de fogo será a alma condenada. Essa é outra contradição: o que se encontra registrado na Bíblia, primeiro, é que (...) Foram lançados vivos no lago de fogo que arde com enxofre (Apocalipse 19:20).
(Nota do autor: Faz-se nesse trecho bíblico mais uma referência a um elemento real, possível, temporal: o enxofre. Claro está que aquele que se apresenta como profeta e que descreve o futuro não tem mais do que seu próprio âmbito (e não um âmbito onisciente, característico do Deus através de quem ele alega estar falando) para prever milênios adiante; ele então fala do enxofre, já que não poderia falar de qualquer outro elemento futurístico, uma vez que de fato não conhecia o futuro.)
E logo depois disso lê-se: O mar entregou os mortos que nele havia, e a morte e o além deram os mortos que neles havia, e foram julgados cada um segundo suas obras. (...) E todo aquele que não foi achado inscrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo (Apocalipse 20:13 e 15). Eis então dois fatos que se contrapõem contradizendo o que os representantes religiosos de hoje afirmam que acontecerá. Lê-se claramente que o julgamento em questão será feito com mortos ressuscitados, para que assim possa haver em seguida a segunda morte. Não se fala, portanto, do julgamento de uma alma, mas de um corpo físico. Da mesma forma é o próprio corpo físico que será lançado no lago de fogo. A pergunta é: como será possível a um corpo físico humano queimar eternamente sem deteriorar-se devido à ação do próprio fogo? Logo os mesmos representantes religiosos se apressarão em dizer que o corpo queimado desaparecerá, mas sobrará a alma para ser queimada eternamente. Detalhe: isso a Bíblia não diz. Outra das várias lacunas no texto que tiveram de ser preenchidas por suposições posteriores (e humanas).
Outra característica do texto bíblico é o constante aparecimento de um caráter sempre místico, e mesmo cabalístico, em certos acontecimentos, apesar das religiões cristãs atuais rejeitarem de forma veemente essas práticas. São comuns, por exemplos, os números cifrados: seiscentos e sessenta e seis, a ressurreição no terceiro dia, os sete selos do apocalipse, os sete anjos, as sete taças, as sete pragas do Egito etc. Isso sem falar da fantástica criação do mundo em seis dias. Não se admira que também no Gênesis a imaginação autoral mais uma vez se forje na possibilidade de seu autor: Deus trabalha seis dias e descansa no sétimo, como qualquer outro operário. Também na criação do homem se encontra uma relação com o factual, outra característica divina: Deus, que é apresentado como inumano, vale-se sempre de artifícios humanos. O pó da terra usado por Deus para moldar o homem tem, para o autor do texto, a mesma coloração de sua própria pele e por isso ele se vê confortável em vincular uma coisa à outra; mesmo o ato de moldar lhe é já comum: ao seu redor ele vê artesãos usando o barro para moldar colunas, vasos, pratos, panelas etc., nada mais óbvio do que um autor imaginativo transpor para sua escrita a realidade que o cerca. No final, o que se percebe no livro é que Deus que nem havia ainda criado o homem usa uma prática humana para construí-lo.
Contrapondo-se a essa materialidade excessiva, o texto bíblico, não raro, também se refere de forma muito conveniente ao impalpável, àquilo cuja existência não se comprova, a não ser por meio da fé que é alardeada como um dom superior, cujos possuidores são escolhidos dentre muitos, mediante vontade divina. Consequentemente, não é possível aos ateus, por exemplo, comprovar a existência de Deus, já que somente o faz aquele que nele crê. Os religiosos, portanto, não admitem nenhuma espécie de experiência que vise à captação de qualquer interferência divina. Vejamos aqui, então, um fato bastante interessante e contraditório. Em visita a qualquer culto religioso cristão, é comum ouvir o representante alegar que Deus está lhe falando algo e que ele precisa reproduzir a tal mensagem. Nota-se que apesar da presença de centenas de participantes no culto, apenas o representante ouve a voz divina e ninguém mais; ainda que se esteja ao lado dele, é impossível a qualquer outro ouvi-la senão ele mesmo. Pois bem. Essa prática certamente não tem fundamento bíblico, pois encontramos em Êxodo, por exemplo, algo contrário a isso. Lá diz: Disse o senhor a Moisés e a Arão: quando Faraó vos disser apresentai de vossa parte algum milagre, dirás a Arão toma a tua vara e lança-a diante de Faraó, e ela se tornará em serpente. Então Moisés e Arão foram ter com Faraó e fizeram assim como o Senhor ordenara. Vê-se aqui uma interessantíssima passagem em que Deus transmite a duas pessoas ao mesmo tempo a mesma mensagem, o que nos induz a crer que a voz divina, assim como qualquer outra voz, é audível. Como podem então, hoje, os representantes religiosos alegarem que Deus lhes fala ao coração e que por isso não nos é possível ouvir essa voz?
Por falar em audibilidade, vale vincular esse tema ao da presença testemunhal. Encontramos na Bíblia a famosa passagem em que Jesus vai ao deserto para ser tentado pelo diabo. Trata-se esse dum texto basicamente representativo, é também um conselho: o diabo não tem limites, se ele tenta o filho de Deus, tentará a qualquer um. Entretanto, analisando-se a viabilidade de tudo isso sem nos atermos ao teor alegórico, há um detalhe intrigante que durante vários milênios tem-nos chegado sem nenhum questionamento: se Jesus se retira para o deserto, ou seja, se ele está sozinho quando é tentado pelo diabo, como o autor que registrou esse acontecimento no texto bíblico poderia saber desse encontro, e mais: como ele poderia saber inclusive do diálogo que houve entre ambos? Os representantes religiosos certamente explicarão que Jesus, depois da tentação, deve tê-la relatado a alguém e que assim, tempos mais tarde, a passagem pôde ser descrita tão detalhadamente. Resta, entretanto, uma pergunta: onde, na Bíblia, está registrado que Cristo tenha contado a quem quer que seja que fora tentado no deserto? Novamente temos aqui uma nova lacuna preenchida de imediato com uma lógica mais conveniente do que religiosa. De todas as inconsistências bíblicas, talvez essa passagem da tentação de Cristo no deserto seja a mais irreal e a mais facilmente contestável. Porém, nem de longe se compara à estranhíssima história de Caim.
Há séculos, os representantes religiosos vêm lutando contra a Ciência (e principalmente contra o Darwinismo) alegando ser Deus o único criador do homem. Considerando-se essa afirmação, e utilizando-se a própria cronologia bíblica, chega-se à conclusão de que a existência humana na Terra não teria mais do que alguns milênios. O que dizer então dos fósseis humanos comprovadamente oriundos de indivíduos vividos milhões de anos atrás? Primeiro leiamos o texto bíblico. Em Gênesis descreve-se a criação de Adão, em seguida a de Eva. Ambos então têm dois filhos: Caim e Abel. Num acesso de fúria e inveja, Caim mata Abel. Com esse assassinato, contabilizamos até aqui na história do mundo a existência três pessoas, pelo menos segundo a Bíblia. Porém, o que sucede em seguida é o mais inacreditável. Amaldiçoado por Deus e consumido pelo remorso de ter matado o próprio irmão, Caim foge para a terra de Node. Lê-se então mais adiante: Conheceu Caim sua mulher, e ela concebeu e teve Enoque (Gênesis 4:17). Oras, de onde saiu essa mulher com quem Caim procria, se segundo a própria Bíblia restara na Terra apenas ele e mais duas pessoas? Talvez os mesmos representantes religiosos digam que depois de criar Adão e Eva Deus houvesse continuado a criar seres humanos, apesar de isso não estar registrado em parte alguma do texto bíblico. Parece que o autor do texto bíblico em questão comete um dos erros mais primários em Literatura: a descontinuidade.
É difícil, de fato, contestar um livro que foi tomado como fundamento duma religião, mas essa é uma contestação necessária que pretende acima de tudo questionar, com o objetivo de encontrar nesses mesmos questionamentos alguma luz que seja, essa sim, real e não mística. Vale inclusive repetir que a própria Bíblia não é um livro religioso, é um livro histórico. Desse modo, o questionamento dela deve provir de fora da religião, deve ser um questionamento despido. Nem mesmo a cruz é um símbolo religioso. Na época de Cristo, centenas de criminosos eram condenados à morte por crucificação. E em algumas regiões, devido ao número elevadíssimo de condenados, o mastro vertical da cruz ficava fixo, cabendo aos criminosos trazerem amarrados às costas apenas a madeira horizontal, que era presa à madeira vertical, formando assim a cruz. Ou seja, a cruz de Cristo era a cruz e vários outros, não se tratava dum símbolo original, muito menos era algo sagrado muito pelo contrário. A pergunta que pode desmistificar toda a questão é esta: se o Messias houvesse vivido nos dias de hoje nos Estados Unidos, por exemplo, e fosse condenado à morte, então, em vez da cruz, os religiosos cristãos adorariam a Cadeira Elétrica e torná-la-iam um símbolo santo? Seria, no mínimo, ridículo. Por isso, que não se abandonem as os questionamentos. É preciso questionar sempre para que a ignorância religiosa nunca se sobreponha à Verdade.
http://www.webartigos.com/artigos/a-religiao-biblica/33430/
Comentários
Mateus 21:01-07 (e os outros evangelistas) dizem que a entrada de Jesus em Jerusalém montado num jumento fora prevista em Zacarias 09:09, mas o rei de que fala Zacarias era um rei humano, que reinaria sobre Israel, não Jesus. As aclamações do povo foram tiradas do Salmo 117:26 ("Bendito o que vem em nome do Senhor").
Além disto, se isto aconteceu, o mais provável é que Jesus estivesse seguindo o roteiro das Escrituras para parecer que ele era como o cara mencionado. Aliás, os evangelhos às vezes dizem que "E ele o fez para que se cumprissem as escrituras".
Pior é perguntar como o narrador do Evangelho sabia da virgindade de Maria.
Nós, Indios.
Lutar com Bravura, morrer com Honra!
Tão estranho quanto é a hipótese de que décadas depois o autor da narrativa do Evangelho entrevistou os envolvidos e reconstituiu a história toda.
Nós, Indios.
Lutar com Bravura, morrer com Honra!
Da mesma forma o rei Davi no salmo 22, descreve a crucificação de Jesus como se estivesse falando de si mesmo.
muitas vezes temos sonhos que se realizam parcialmente ou quase totalmente, isto é muito comum.
sem nenhuma consciência sem existências
Ele estava falando de si mesmo. É só o que se pode deduzir. São os crentes que tentam ver profecia onde não existe.
E sonhos que se realizam 800 anos depois não têm muita utilidade.
Aí eu discordo. Se fôsse um sonho descritivo e com riqueza de detalhes que não dessem margens à interpertações diversas. O apocalipse é um exemplo de catástrofes anunciadas em que qualquer coisa e qualquer lugar pode ser encaixado no contexto.
na adolecencia eu assistia jonny quest e voce ?
sem nenhuma consciência sem existências
O que mais tinha para assistir nesta época além disso? Robo Gigante? Esper? Might Thor? Aqueles "desenhos animados" baseados em HQ onde só mexiam a boca (Hulk, Namor, Thor, Capitão América...). OU pior ainda, Batman (bat-bicha), ?
sem nenhuma consciência sem existências
Johnny disse: Muito comum é uma pessoa ler um livro e depois assumir a personagem. Acontece muito freqüentemente com crianças e adultos.
Criaturo disse: na adolecencia eu assistia jonny quest e voce ?
Disfarcei o quê meu filho? Acho que você é que não teve infância ou não entendu o que eu postei. Ou será que as fantasias de Super Homem, Batman, máscaras de Ronaldinho(argh) e etc não são personagens que serão interpretados? E olha que eunem citei os inúmeros personagens assumidos em games adultos, que levaram inclusive a proibição de alguns como Duke Nuke, CS, Bully e etc