Balanço do Terror
Publicado originalmente em 19 de dezembro de 2006
Por Acauan
Um impasse freqüente e esperado nos debates entre religiosos e os que não o são ocorre sempre que uma das partes acusa a outra de ter sido responsável pelos grandes morticínios da História.
Nesta hora, ateus militantes citam a Expansão Islâmica, Cruzadas, Inquisição, Reforma, Contra-Reforma, perseguições religiosas e o terrorismo fundamentalista, enquanto os defensores da religião têm sempre na ponta da língua a resposta aludindo aos massacres promovidos pelos regimes totalitários do século XX, designados como crias do ateísmo e do materialismo.
As réplicas de parte a parte giram sempre em torno da desculpa, melhor ou pior formulada, conforme o talento retórico dos debatedores, de que o ideário que defendem nunca incluiu tal uso da violência, devendo os resultados macabros ser atribuídos a líderes corruptos que deturparam o sentido original da crença que ostentavam.
Ponto para quem diz que é difícil acusar um Buda ou um Jesus de Nazaré de mandar matar gente, mas nem o muçulmano mais devoto pensaria em dizer o mesmo sobre Mohamed.
É fato que a religião foi causa direta ou indireta de muitas mortes e sofrimentos ao longo da História.
Como os religiosos não podem negar este fato, recorrem ao argumento da deturpação e, tão frequentemente quanto, a um artifício comprometedor, defendendo que o total de mortes atribuíveis à religião ao longo dos últimos dois milênios é menor que o número de cadáveres produzidos pelas ideologias materialistas apenas no último século.
Há algo de terrivelmente imoral nesta argumentação.
Independente de quem de fato é responsável por mais mortes, não tenho dificuldade em concordar que alguém que matou milhões é pior que outro que matou milhares.
Só que, até onde me lembro do que é decência, a melhor conclusão é que ambos são ruins.
O que não entendendo em muitos religiosos é por que acham que a hipótese de suas igrejas ter causado menos mortes do que atribuem às ideologias a que se opõem lhes serve como escusa moral.
Como podem associar santidade a uma organização que promoveu morticínios, alegando apenas que outros fizeram coisa pior?
Além do que, uma pergunta que sempre me ocorre quando religiosos dizem que suas guerras mataram menos que as guerras dos outros, é se tal resultado comparativo se deve à sua superioridade moral ou à sua inferioridade técnica.
Se as guerras religiosas do passado tivessem sido travadas com a mesma tecnologia de destruição disponível a Adolf Hitler, é possível que não sobrasse ninguém para contar sua versão da História.
Não que técnica seja indispensável quando a vontade de matar é grande, Ruanda que o diga.
Nem todos os religiosos lançam mão deste argumento, assim, como dizia um antigo comunicador, “queiram todos os demais aceitar os nossos respeitos”*.
Como o Papa João Paulo II, que em 2004, se referindo à Inquisição pediu perdão pelos “erros cometidos a serviço da verdade por meio do uso de métodos que não têm relação com a palavra do Senhor”.
Meio escorregadio, mas vindo da Santa Sé até passa.
A moda não pegou como deveria, restando nos segmentos mais conservadores do catolicismo romano quem torça o nariz para o pedido de perdão do Karol, destacando com veemência aspectos alegadamente progressistas da Inquisição que, apesar de matar e torturar milhares, teria elevado os critérios para se matar e torturar a níveis mais exigentes dos que havia antes.
O bugre aqui pode não ser nenhum especialista no assunto, mas por acaso isto não é o tal relativismo moral que os conservadores católicos tanto repudiam?
Se matar e torturar pessoas por professarem crença diferente da oficial é errado, então não há como defender a Inquisição. Se defenderem, se aproximam perigosamente daquelas tais ideologias materialistas que acusam de matar mais gente que a ideologia deles.
Mas falando em ideologias materialistas, os dois lados que lançam mão do Balanço do Terror para acusar seu adversário tem um teto de vidro suficientemente grande para serem econômicos com as pedradas.
A reação típica do ateísmo militante quando lhes lançam a cara os milhões assassinados pelo nazismo e comunismo costuma ser um dar de ombros, acompanhado de um não tenho nada com isto, quando muito.
Ou coisa parecida.
Bem, se dezenas de milhões de pessoas morreram por causa de ideologias, vale a pena dar uma estudada nas tais antes de ter certeza que nenhum pedacinho delas contamina sua visão de mundo.
Quem já fez isto, religioso ou ateu, levante a mão.
*n.A. (nota do Acauan): Referência ao radialista Hélio Ribeiro, criador e locutor do programa “O Poder da Mensagem”.
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Acauan dos Tupis
Nós, Indios.
Lutar com Bravura, morrer com Honra!
Acauan, as pessoas atéias ainda podem argumentar que o ateísmo não dita normas de conduta nem alega possuir uma fonte de autoridade absoluta como um papa nomeado pelos céus ou um livro sagrado inspirado por Deus como justificativa de suas ações, o mesmo não pode ser dito a respeito das religiões cristãs.
Um outro ponto que os religiosos ignoram, se as ações maléficas da religião foram uma deturpação da vontade de Deus Ele não deveria ser responsabilizado pela omissão de ter deixado seus supostos representantes agirem tão livremente e causando horrores em seu nome?
Acauan disse: Mas falando em ideologias materialistas, os dois lados que lançam mão do Balanço do Terror para acusar seu adversário tem um teto de vidro suficientemente grande para serem econômicos com as pedradas.
Este trecho fez-me sorrir, por nele reconhecer o meu reflexo de ontem, talvez de hoje, espero que não o de amanhã.
Todo o texto é rigoroso e agradável de ler. Prazeroso, no sentido de nos reconhecermos nele.
Acauan disse: Bem, se dezenas de milhões de pessoas morreram por causa de ideologias, vale a pena dar uma estudada nas tais antes de ter certeza que nenhum pedacinho delas contamina sua visão de mundo.
Quem já fez isto, religioso ou ateu, levante a mão.
Minha mão está levantada, para os que não me podem ver.
Isto, não quer dizer, ter conseguido identificar ou eliminar cada pedaço presente. Também, não significa, uma vez identificado, inexistência de resistência interna para tentar racionalizar e salvar o que de outro modo é repudiado.
Acredito na virtude, à qual se chega pela persistência do habito.
Cameron disse: Acauan, as pessoas atéias ainda podem argumentar que o ateísmo não dita normas de conduta nem alega possuir uma fonte de autoridade absoluta como um papa nomeado pelos céus ou um livro sagrado inspirado por Deus como justificativa de suas ações, o mesmo não pode ser dito a respeito das religiões cristãs.
É uma questão delicada, Cameron.
Não se pode descartar de imediato as acusações dos religiosos dirigidas contra as ideologias materialistas modernas, que têm em seu núcleo uma dosagem de cientificismo e relativismo, real ou pretendido, que podem formar um ambiente intelectual estéril para o conceito de dignidade humana, abrindo caminho para projetos de engenharia social que seguem a idéia de que matar milhões hoje é justificado para beneficiar bilhões em algum futuro indefinido.
Obviamente que estas ideologias tem o ateísmo como componente e não o inverso, mas a réplica religiosa de que o ateísmo amalgama os componentes ideológicos materialistas não é de todo errada e os riscos inerentes têm que ser entendidos para ser prevenidos.
Cameron disse: Um outro ponto que os religiosos ignoram, se as ações maléficas da religião foram uma deturpação da vontade de Deus Ele não deveria ser responsabilizado pela omissão de ter deixado seus supostos representantes agirem tão livremente e causando horrores em seu nome?[/red]
Correto, o que retorna ao Problema do Mal, que os religiosos respondem sempre com a Panacéia do Livre Arbítrio, que é insuficiente para resolvê-lo.
E também só podem absolver suas respectivas religiões pelos seus crimes históricos apelando ao relativismo - o mesmo componente perigoso das ideologias materialistas - ou seja, armam sua própria armadilha moral.
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Comentários
Um outro ponto que os religiosos ignoram, se as ações maléficas da religião foram uma deturpação da vontade de Deus Ele não deveria ser responsabilizado pela omissão de ter deixado seus supostos representantes agirem tão livremente e causando horrores em seu nome?
Este trecho fez-me sorrir, por nele reconhecer o meu reflexo de ontem, talvez de hoje, espero que não o de amanhã.
Todo o texto é rigoroso e agradável de ler. Prazeroso, no sentido de nos reconhecermos nele.
Minha mão está levantada, para os que não me podem ver.
Isto, não quer dizer, ter conseguido identificar ou eliminar cada pedaço presente. Também, não significa, uma vez identificado, inexistência de resistência interna para tentar racionalizar e salvar o que de outro modo é repudiado.
Acredito na virtude, à qual se chega pela persistência do habito.
É uma questão delicada, Cameron.
Não se pode descartar de imediato as acusações dos religiosos dirigidas contra as ideologias materialistas modernas, que têm em seu núcleo uma dosagem de cientificismo e relativismo, real ou pretendido, que podem formar um ambiente intelectual estéril para o conceito de dignidade humana, abrindo caminho para projetos de engenharia social que seguem a idéia de que matar milhões hoje é justificado para beneficiar bilhões em algum futuro indefinido.
Obviamente que estas ideologias tem o ateísmo como componente e não o inverso, mas a réplica religiosa de que o ateísmo amalgama os componentes ideológicos materialistas não é de todo errada e os riscos inerentes têm que ser entendidos para ser prevenidos.
Correto, o que retorna ao Problema do Mal, que os religiosos respondem sempre com a Panacéia do Livre Arbítrio, que é insuficiente para resolvê-lo.
E também só podem absolver suas respectivas religiões pelos seus crimes históricos apelando ao relativismo - o mesmo componente perigoso das ideologias materialistas - ou seja, armam sua própria armadilha moral.
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Faço minhas as palavras do Mig. O texto é tão bom que, mesmo tratando de um tema cavernoso, é prazeroso de ler.