Criacionismo: Engodo e Estorvo - parte II
Publicado orignalmente em 18/2/2005 21:00:24
por Acauan
Na primeira parte deste comentário, dividi os fundamentalistas cristãos autodenominados “criacionistas científicos” em dois grupos principais.
O primeiro formado por crentes sem qualquer formação ou conhecimento científico, cujo discurso antievolucionista é apenas repetição ipsis litteris de fontes apologéticas.
O segundo grupo, que dá sustentação intelectual (se é que podemos chamar assim) ao movimento, é composto por religiosos com formação científica ou técnica, dedicados a criar uma ponte entre suas doutrinas teológicas e o que se convencionou chamar de consenso da comunidade científica.
Dos dois lados desta ponte imaginária, os religiosos que a erigiram anseiam que ela seja a passarela segura que levará sua Fé às cátedras, enquanto, na outra margem, todas as universidades respeitadas do mundo enxergam apenas o abismo existente entre seus currículos e a pretensão dos pios militantes.
A ruidosa manifestação das massas desinformadas do primeiro grupo não merece análise mais profunda, pois apenas trombeteia as teses produzidas pelos do segundo, quase sempre simplificadas ao limite da distorção para tornar assuntos técnicos compreensíveis e palatáveis para proselitistas leigos e doutrináveis idem.
No Brasil, o representante institucional mais visível do segundo grupo é a Sociedade Criacionista Brasileira, praticamente um apêndice da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que declara ter por objetivodivulgar evidências resultantes de pesquisas, que apóiem a tese de que o mundo físico e os seres vivos são o resultado de atos criativos diretos de um Deus pessoal.
A SCB copia a fórmula de seus similares americanos como Creation Research Society e Institute for Creation Research. A Sociedade possui em seus quadros pessoas com credenciais acadêmicas reconhecidas, embora sem produção científica relevante.
Estas instituições de propaganda religiosa caracterizam-se pela tentativa de dar credibilidade científica aos seus dogmas de Fé, utilizando para isto uma retórica habilmente preparada para reforçar as certezas dos crentes que nunca cogitaram questionar seus livros sagrados e trazer a dúvida àqueles que preferem outras alternativas de explicação para tudo que vemos.
Particularidades interessantes são os conteúdos publicados pela S.C.B. que evidenciam um reconhecimento tácito da fragilidade científica de várias de suas teses fundamentais, ao mesmo tempo em que abrem enorme espaço de reconhecimento implícito, no mínimo, à possibilidade da Evolução.
Estes reconhecimentos são sistematicamente ignorados pelos proselitistas leigos que, no geral, querem desesperadamente acreditar que a Teoria da Evolução é uma bobagem sem qualquer nexo e que o relato da criação do Gênesis é referendado por consistentes e incontestáveis evidências científicas. Exatamente o que pregam por toda parte.
As características de engodo e estorvo do autodenominado criacionismo científico se mostram nesta vala entre a cautela de seus mentores conceituais em proclamar uma vitória absoluta contra quem eles chamam de evolucionistas e o entusiasmo de seus seguidores em comemorar esta vitória total como fato consumado.
Este hiato contraditório se explica pelo fato de o verdadeiro objetivo dos ditos criacionistas não ser aquele declarado de divulgar evidências da criação. Este é apenas o meio. O objetivo deles é promover a Fé no Deus bíblico como requisito para cumprimento do plano de salvação, como entendido pelos fundamentalistas cristãos, particularmente os Adventistas do Sétimo Dia, seita dominante na cúpula da SCB.
O fato de ser a Igreja Adventista a controladora ideológica deste segmento da máquina de propaganda criacionista é relevante, pois como uma de suas doutrinas fundamentais é a crença na iminência da volta de Cristo e do fim dos tempos, questões como o hiato contraditório relatado são tidas como irrelevantes, dado a urgência de salvar almas.
Como após o segundo advento todas as dúvidas sobre as contradições criacionistas serão explicadas, então, no possível entender deles, não vale a pena arriscar a salvação de ninguém por conta de detalhes técnicos.
Este pensamento é plenamente válido do ponto de vista religioso cristão, mas completamente absurdo do ponto de vista científico, provando mais uma vez o engodo representado por tal ideologia.
Não digo isto baseado em qualquer evidência material reconhecida que conteste suas teses. Não importa quais sejam, sempre haverá um artifício retórico pelo qual eles a negarão ou um casuísmo técnico ao qual possam recorrer. Algo parecido com o modo como tentam justificar as conhecidas e óbvias contradições bíblicas.
A base para esta afirmação é justamente a aceitação implícita destas evidências pelas próprias fontes criacionistas.
Em sua seção de perguntas freqüentes, o site da SCB, discorre sobre diversos assuntos, finalizando a maioria deles com uma lista dos problemas não resolvidos de maior preocupação para a interpretação religiosa do tema, dos quais constam:
- O conflito entre Fé e razão; 1
- A ordenação da seqüência de fósseis na coluna geológica; 2
- A semelhança dos fósseis da camada superior da coluna com as espécies atuais; 2
- A grande diferença dos fósseis da camada inferior da coluna às espécies que vivem agora; 2
- A inexistência de explicação lógica-científica para a localização das plantas e animais de hoje que se ajuste à crença no dilúvio universal e na arca de Noé; 2
- A série morfológica de alguns fósseis se ajusta de modo geral à Teoria da Evolução; 2
- Nunca foi encontrada evidência fóssil de que os homens gigantes citados em Gênesis tenham existido; 3
- Os fósseis que tem características de homem e de macaco; 3
- A falta de explicação deles de o porque do homem ser tão semelhante a outros animais, principalmente os macacos; 4
- Que não são genuínas as pegadas de homens ao lado das de dinossauros no leito do rio Paluxy, no Texas; 5
- Que não são encontrados fósseis de dinossauros junto aos de mamíferos que vivem hoje; 6
- A seqüência de idades radiométricas, que dão idades mais antigas para as camadas inferiores da coluna geológica e idades mais jovens para camadas superiores; 7
- Que a datação radiométrica produz sistematicamente idades muito maiores do que as sugeridas pela Bíblia; 7
- A alternação de glaciações e aquecimentos exige um tempo mais longo do que consideram admissível; 8
- A falta de explicação deles para as sondagens de gelo na Groenlândia que apontam períodos de cem mil anos ou mais; 8
- A falta de explicação deles para os Ciclos de Milankovich; 8
- A falta de explicação deles para o movimento das placas tectônicas e o magma do fundo do oceano. 9
Os proselitistas do fundamentalismo criacionista podem lançar mão de inúmeros entretantos e todavias para negar que o reconhecimento do que eles chamam de “problemas não resolvidos” compromete muito mais suas próprias doutrinas do que toda a exaustiva pregação que fazem sobre as lacunas (reais ou imaginárias) da Teoria da Evolução comprometem esta.
Basta um mínimo de análise imparcial para somar dois mais dois e concluir que se não são encontrados juntos fósseis de dinossauros e de mamíferos modernos, fica difícil crer que estas espécies foram criadas no mesmo dia e coexistiram nos mesmos territórios.
E o que dizer dos crentes do primeiro grupo (os desinformados) que clamam no deserto que o necessário elo perdido dos evolucionistas nunca foi encontrado, se a própria instituição que lhes provê de dados reconhece a existência de fósseis com características de homem e de macaco?
Camadas geológicas, séries morfológicas fósseis, datação radiométrica, tudo que crentes leigos desprezam ou ridicularizam como bobagens inventadas pelos Darwinistas é apresentado pela própria SCB como problemas não resolvidos, ou seja, reconhecem que estas evidências existem, são consistentes e desmentem suas teses.
Neste ponto ao engodo criacionista se soma o estorvo, pois ao priorizar o objetivo religioso sobre o compromisso com a evidência científica, terminam por serem culpados, ou no mínimo cúmplices, da promoção sistemática da ignorância.
Se isto fosse mantido dentro de seus próprios grupos, meno male. Numa sociedade democrática, se as pessoas querem, por sua própria opção, ser ignorantes, é direito e problema delas.
Só que a coisa muda completamente de figura quando os promotores desta ignorância fingem que ela não existe e militam politicamente para leva-la às salas de aula e aos setores da sociedade que não pactuam voluntariamente com suas crenças confessionais.
Os fundamentalistas cristãos, defensores do chamado criacionismo bíblico, rejeitaram a opção honesta de se apresentar como religiosos interessados em demonstrar que a Teoria da Evolução tem falhas, enquanto defendem que suas crenças bíblicas têm (na opinião deles) evidências a seu favor.
Optaram pelo caminho de patrocinarem um engodo quando assumiram o objetivo de defender certezas absolutas, sabendo plenamente que as próprias evidências que deveriam embasar estas certezas são muito mais favoráveis à constituição da dúvida.
São também um estorvo, não apenas pela desinformação que consciente ou inconscientemente promovem, mas também por seu ativismo político ter reforçado as contaminações ideológicas inegavelmente vivas em segmentos científicos defensores radicais do darwinismo, fazendo com que a reação apaixonada de alguns expoentes de grande visibilidade deste grupo associassem a comunidade científica à imagem de partidaristas, igualando-os assim aos ditos criacionistas, situação extremamente vantajosa para eles, mas incontestavelmente nociva para a ciência.
Nenhum cientista honesto pode acreditar que homens de ciência pairem acima das ideologias de seu tempo e não sejam influenciados por elas. Por estarem conscientes disto, é dever profissional da classe policiar a si e às instituições às quais estão ligados.
Conforme a época, este policiamento e a isenção esperada como resultado será maior ou menor, nunca pleno, e por isto mesmo devem ter para com a Teoria Científica mais brilhante e melhor fundamentada um sentimento de respeito pelo progresso conquistado, mas nunca de fé apaixonada pelo que foi descoberto.
Assim age a ciência saudável, que nos deu os triunfos do gênio representados pelas equações da gravitação universal e da relatividade geral, cada uma a seu tempo e a seu modo, sem que a superação de uma pela outra provocasse ressentimento nos Newtonianos ou euforia nos relativistas. A ciência cumpriu seu papel, a fronteira do conhecimento humano avançou e apenas isto importa.
Com a Teoria da Evolução deve ocorrer o mesmo, quer o Darwinismo avance na obtenção de evidências cada vez mais detalhadas, quer caminhe gradualmente para a substituição por teorias mais completas, não se pode aceitar como científico o erguer bandeiras em sua defesa ou o proclamar de loas por suas vitórias, cada vez que um fóssil é desenterrado ou uma datação é feita.
Se há algo de positivo a ser tirado do engodo e estorvo dos fundamentalistas da "Ciência da Criação" é esta lição de autocrítica para a ciência de verdade.
1. Que problemas não resolvidos sobre a criação e a ciência são de maior preocupação?
Como obter a verdade quando a razão e a fé parecem estar em conflito?
2. Que problemas não resolvidos sobre o dilúvio são de maior preocupação?
Como um evento catastrófico conseguiu produzir a seqüência ordenada de fósseis que é observada? Por que os fósseis na parte inferior da coluna geológica parecem tão diferentes de qualquer coisa viva atualmente, enquanto os fósseis na parte superior da coluna são mais semelhantes às espécies que vivem agora? Por que alguns fósseis se apresentam numa série morfológica que se ajusta, de um modo geral, com a teoria da evolução? Como as plantas e animais chegaram ao local onde agora estão após o dilúvio?
3. Que problemas não resolvidos sobre fósseis humanos são de maior preocupação?
Por que não são encontrados fósseis de homens gigantes? Por que não são encontrados fósseis humanos que pareçam ter sido enterrados pelo dilúvio? Qual é a explicação para os fósseis que têm características de homem e de macaco?
4. Que problemas não resolvidos sobre mudanças nas espécies são de maior preocupação?
Como eram os animais originalmente criados? Por que os seres humanos são tão semelhantes a outros animais, especialmente aos macacos?
5. Foram encontradas pegadas de seres humanos junto a pegadas de dinossauros?
Não. Houve um anúncio de que tais pegadas foram encontradas juntas, no leito do rio Paluxy no Texas, mas esta afirmação foi abandonada por todos os criacionistas que têm treinamento científico. Aquelas pegadas de dinossauro são genuínas, mas as humanas não são.
6. Que problemas não resolvidos sobre os dinossauros são de maior preocupação?
Como podemos explicar o que parece ser ninhos de ovos de dinossauro e filhotes em sedimentos que acreditamos terem sido provavelmente depositados pelo dilúvio? (9) Por que não encontramos fósseis de dinossauros misturados com fósseis de mamíferos que vivem hoje? Como pode ter o homem sobrevivido com tais poderosos animais ao seu lado?
7. Que problemas não resolvidos sobre a idade da Terra são de maior preocupação?
A questão mais difícil é provavelmente a seqüência aparente de idades radiométricas, dando idades mais antigas para as camadas inferiores da coluna geológica e idades mais jovens para camadas superiores. Outras questões são: por que a datação radiométrica produz sistematicamente idades muito maiores do que as sugeridas pelo relato bíblico; a razão para vestígios de atividade na coluna geológica; e explicação para as longas séries de camadas de gelo polar.
8. Que problemas não resolvidos sobre Eras Glaciais são de maior preocupação?
Como explicar as evidências de que algumas regiões da América do Norte e Europa Setentrional experimentaram intervalos alternados de glaciação e climas mais quentes, sugerindo um período de tempo mais longo do que a maioria dos criacionistas julga disponível? Como explicar sondagens do gelo da Groelândia e Antártica que são interpretadas como representando períodos de tempo de 100.000 anos ou mais? Qual o significado de seqüências de camadas interpretadas como devidas a mudanças cíclicas na órbita da Terra, chamadas ciclos de Milankovich?
9. Que problemas não resolvidos sobre tectônica de placas são de maior preocupação?
Quanto as placas realmente se moveram? Quando e quão rapidamente se moveram? O que aconteceu aos continentes pré-diluvianos? Como o magma do fundo oceânico se esfriou em poucos milhares de anos se ele foi depositado tão rapidamente durante o dilúvio?
A evolução não é uma teoria, é um fato. A teoria da evolução é que é uma teoria. As teorias foram criadas para tentar explicar a evolução, da maneira mais honesta e melhor possível, a partir de dados concretos
O criacionismo é uma tentativa de dar uma roupagem moderna e científica aos velhos e obsoletos dogmas religiosos, o híbrido resultante seria risível se não fosse a insistente militância desses em querer infectar as disciplinas escolares com ele.
Darwin intuiu sua teoria com base nos limitados conhecimentos de sua época. Nos 150 anos seguintes, muitos novos fósseis mostraram que ele estava certo e o avanço da genética, principalmente a descoberta do DNA, explicou os fenômenos.
As mutações e a seleção natural são um fato. Continuam acontecendo diante de nossos olhos e não há nenum motivo para supor que o processo só começou recentemente. Os registros fósseis mostram alterações progressivas nos seres vivos, com espécies novas surgindo e outras desaparecendo à medida em que passa o tempo.
Faz todo o sentido explicarmos essas alterações por meio das mutações e da seleção natural, agindo ao longo de bilhões de anos assim como vemos acontecer no presente, em vez de achar que as coisas eram diferentes no passado.
Esta explicação é conclusiva? Não. Sempre existe a possibilidade de que se descubra um dia que ela esteja errada. Entretanto, a evolução é, até agora, a melhor explicação encontrada. Ela explica todos os fenômenos já observados e permite fazer previsões que depois se cumprem. Não há, até agora, nenhum motivo para ser rejeitada e, certamente, os vários mitos da criação religiosos, só aceitáveis através da fé, não se qualificam como explicação nem como ciência.
Já temos todos os fatos? Não. Fósseis são raros. A maioria dos seres vivos desaparece sem deixar vestígios. Isto faz com que tenhamos um quebra-cabeça com muitas peças faltando e cada peça que surge pode confirmar ou refutar hipóteses sobre quais caminhos a evolução seguiu e quais métodos usou em cada caso. Isto, e não o fato da evolução, é o que ainda está em aberto.
Não serão pastores ignorantes repetindo nas igrejas, para fiéis ignorantes e crédulos, que "A evolução é uma teoria fracassada!" que irão refutar os fatos. Mas eles podem, e aí está o perigo, convencer governos a cortar verbas para pesquisas. Podem desencorajar cientistas em potencial a seguir carreira em especialidades que conflitam com sua fé. Podem atrasar e, quem sabe, até reverter o progresso da ciência.
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Comentários
(Ana Lúcia Tourinho - Bióloga)
As mutações e a seleção natural são um fato. Continuam acontecendo diante de nossos olhos e não há nenum motivo para supor que o processo só começou recentemente. Os registros fósseis mostram alterações progressivas nos seres vivos, com espécies novas surgindo e outras desaparecendo à medida em que passa o tempo.
Faz todo o sentido explicarmos essas alterações por meio das mutações e da seleção natural, agindo ao longo de bilhões de anos assim como vemos acontecer no presente, em vez de achar que as coisas eram diferentes no passado.
Esta explicação é conclusiva? Não. Sempre existe a possibilidade de que se descubra um dia que ela esteja errada. Entretanto, a evolução é, até agora, a melhor explicação encontrada. Ela explica todos os fenômenos já observados e permite fazer previsões que depois se cumprem. Não há, até agora, nenhum motivo para ser rejeitada e, certamente, os vários mitos da criação religiosos, só aceitáveis através da fé, não se qualificam como explicação nem como ciência.
Já temos todos os fatos? Não. Fósseis são raros. A maioria dos seres vivos desaparece sem deixar vestígios. Isto faz com que tenhamos um quebra-cabeça com muitas peças faltando e cada peça que surge pode confirmar ou refutar hipóteses sobre quais caminhos a evolução seguiu e quais métodos usou em cada caso. Isto, e não o fato da evolução, é o que ainda está em aberto.
Não serão pastores ignorantes repetindo nas igrejas, para fiéis ignorantes e crédulos, que "A evolução é uma teoria fracassada!" que irão refutar os fatos. Mas eles podem, e aí está o perigo, convencer governos a cortar verbas para pesquisas. Podem desencorajar cientistas em potencial a seguir carreira em especialidades que conflitam com sua fé. Podem atrasar e, quem sabe, até reverter o progresso da ciência.