“As utopias são sonhos de libertação coletiva que na vigília se revelam pesadelos.” – John Gray
As utopias modernas ocidentais, que inundaram de sangue o século 20, são tributárias das religiões, especialmente do cristianismo primitivo, apesar de embaladas em termos seculares. Esta é a tese polêmica do filósofo John Gray em “Missa Negra”, livro onde ele sustenta que as roupagens de ciência social servem apenas para dar cara nova à crença apocalíptica de épocas antigas, de que “a humanidade estaria no limiar de uma nova era”.
Segundo o autor, Jesus e seus seguidores acreditavam estar vivendo no fim dos tempos, “quando os males do mundo seriam extintos”. Esta fé redentora, que colocaria um fim nas doenças, sofrimento, fome, guerras e opressão, inspirava os primeiros cristãos, e hoje ainda serve de inspiração para muitos utópicos. John Gray liga uma metralhadora giratória, sem fazer distinção ideológica de seus alvos. Conservadores, neoconservadores, liberais, socialistas, verdes; todos recebem duras críticas quando sucumbem a esta escatologia.
Os jacobinos e bolcheviques revolucionários, por exemplo, rejeitavam a religião tradicional, mas sua convicção de que um novo mundo livre dos crimes do passado seria possível não deixa de ser uma demonstração de fé religiosa, uma reencarnação secular de primitivas crenças cristãs. Os liberais que pregam um progresso linear, como se houvesse um “fim da história”, também apelam para um mito que, para Gray, atende à necessidade humana de significado. A teleologia histórica nada mais seria do que uma nova seita religiosa.
A visão apocalíptica das utopias se assemelha muito àquela das religiões antigas. Uma revelação na qual os mistérios são desvendados no fim dos tempos, e para os “eleitos”, não significa catástrofe, mas salvação. A história passa a ter uma finalidade, que vem a ser a salvação da humanidade. Segundo Gray, foi “o cristianismo que introduziu a crença de que a história humana é um processo teleológico”. Os “ungidos” fazem parte de algo muito maior, e o novo reino, com abundância e paz, está na iminência de surgir. O paraíso está logo ali, ao alcance dos escolhidos. Basta um “messias salvador” para concretizar os planos.
Muitas seitas milenaristas surgiram na história, todas compartilhando de certos aspectos comuns em relação à ideia de salvação. Entre suas principais características, elas seriam: coletivas, ao alcance da comunidade de fiéis; terrestres, por se concretizarem na Terra; iminentes, pois logo ocorreriam; totais, pois não basta melhorar a vida na Terra, mas sim torná-la perfeita; miraculosas, pois contam com a intervenção divina. A política moderna, para Gray, bebeu dessas fontes, e “tem sido movida pela crença de que a humanidade pode se livrar de males imemoriais pela força do conhecimento”.
O pensamento utópico se caracteriza pela busca de uma condição de harmonia em um ponto de chegada. O conflito, característica universal da vida humana, seria extinto. Os seres humanos não mais desejariam coisas incompatíveis, conflitantes entre si. Os valores seriam todos convergentes, harmônicos. Pensadores mais céticos sempre descartaram esta possibilidade. David Hume escreveu: “Qualquer plano de governo que pressuponha uma grande reforma nos hábitos da humanidade é com toda evidência imaginário”. Os homens estão fadados a conviver com valores conflitantes.
Uma coisa é lutar para melhorar a vida dos homens, para reduzir o sofrimento. Outra, bem diferente e muito perigosa, é abraçar um sonho utópico. Para Gray, um projeto utópico é aquele em que não se verificam circunstâncias nas quais possa ser realizado. Ele diz: “Todos os sonhos de uma sociedade para sempre livre de todo poder e coação – seja marxista ou anarquista, liberal ou tecnocrática – são utópicos na medida em que jamais poderão concretizar-se, pois desmoronam frente às persistentes contradições das necessidades humanas”.
A linha utópica do Iluminismo, no afã de suplantar o cristianismo, teve que se mostrar capaz de atender às esperanças por ele geradas. Em nome da Razão, tinham que buscar um sentido para a vida humana. Seus filósofos não puderam se eximir de cair em uma visão da história como luta entre a luz e as trevas, o Bem e o Mal. Os obstáculos no caminho da Utopia nunca são, para eles, frutos das falhas da natureza humana, e sim maquinações das forças do mal. Teorias conspiratórias abundam como consequência disso. E para aperfeiçoar a humanidade, o terror passa a ser um instrumento aceito, um meio necessário para liquidar esses obstáculos e chegar ao paraíso. Os jacobinos teriam sido os primeiros a adotar esta prática com este intuito.
Esta mentalidade utópica vai da esquerda à direita. Para John Gray, “os neoconservadores se distinguem por seu beligerante otimismo, que os vincula a uma poderosa corrente utópica do pensamento iluminista e à convicção fundamentalista cristã de que o mal pode ser derrotado”. Quando Bush e seus companheiros abraçam uma cruzada moral para exportar a democracia e a liberdade, sob o poder dos mísseis, eles estão aderindo a esta crença utópica. A linguagem dos neoconservadores usa e abusa de termos religiosos e escatológicos, da luta do Bem contra o Mal. O terrorismo será extirpado do mundo pelas forças do Bem. O desastre no Iraque foi o resultado concreto deste lindo sonho.
O livro de John Gray parece um infindável poço de pessimismo, condenando praticamente todas as vertentes ideológicas modernas quando elas flertam com sonhos utópicos. Seu ultra-realismo, entretanto, pode ser visto como um remédio amargo contra os riscos das aventuras utópicas. Assim como Spinoza, Gray reconhece que “não há motivos para supor que o ciclo da ordem e da anarquia algum dia chegue ao fim”. Esta visão é desalentadora, e a tentação de abraçar uma visão da história como uma narrativa de redenção é grande. O problema é que os pilares do que chamamos de civilização são mais frágeis do que muitos supõem.
Concordo com Gray quando ele diz que “o que é conquistado sempre pode ser perdido, às vezes num piscar de olhos”. Crer numa teleologia qualquer, num progresso cumulativo de conhecimento que, concomitantemente, produz mais liberdade e paz, pode ser um ato arriscado de pura fé. Diz Gray: “As sociedades liberais merecem ser defendidas, pois encarnam um tipo de vida civilizada no qual convicções opostas podem coexistir em paz. Quando se transformam em regimes missionários, essa conquista é posta em risco”. Preservar certas conquistas da civilização parece uma meta menos excitante que partir em busca de sonhos impossíveis. “A barbárie tem um certo encanto, especialmente quando vem trajada de virtude”, reconhece Gray.
O antídoto, segundo o autor, é o realismo. Para os realistas, as relações internacionais, assim como a vida em geral, consistem em problemas quase sempre insolúveis. Gray explica melhor: “O realismo é uma navalha de Occam que serve para minimizar as alternativas radicais entre os diferentes males”. Os realistas deveriam rejeitar a suposição de que a humanidade caminha para um estado em que não mais haverá conflitos sem solução. Para Gray, acreditar no oposto é ilusório e perigoso. Afinal, “não existe uma só maneira certa de resolver os conflitos entre os valores universais”. O realista, em suma, reconhece os defeitos inatos dos seres humanos. Os impulsos humanos não são naturalmente benignos, pacíficos ou sensatos. Basta verificar como tantos tiranos foram não só temidos, como também adorados. Quem terá a ousadia de prever que isso não se repetirá no futuro?
Em tempo: John Gray é tão realista que chega a levantar a hipótese de que esperar muito mais realismo dos seres humanos, tão sedentos por esperança, também pode ser um ideal utópico.
Por Rodrigo Constantino
http://www.ordemlivre.org/2011/12/realismo-e-utopia/
Comentários
Utopia: Software Livre
Para eles, quanto pior, melhor. Quanto pior, maiores as chances de uma revolução que vai destruir tudo e permitir que seu mundo perfeito utópico surja das ruínas, povoado pelo 'homem novo'.