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A participação da sociedade civil na revolução de 1964

Fernando_SilvaFernando_Silva Administrador, Moderador


http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/03/31/a-ditadura-civil-militar-438355.asp
A ditadura civil-militar

Por Daniel Aarão Reis*

Tornou-se um lugar comum chamar o regime político existente entre 1964 e 1979 de “ditadura militar”. Trata-se de um exercício de memória, que se mantém graças a diferentes interesses, a hábitos adquiridos e à preguiça intelectual. O problema é que esta memória não contribui para a compreensão da história recente do país e da ditadura em particular.

É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964. É como tapar o sol com a peneira.

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As marchas da Família com Deus e pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350 mil pessoas. Depois houve a Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Estiveram ali, no mínimo, a mesma quantidade de pessoas que em São Paulo. Sucederam-se marchas nas capitais dos estados e em cidades menores. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso. Mesmo descontada a tendência humana a aderir à Ordem, trata-se de um impressionante movimento de massas.

Nas marchas desaguaram sentimentos disseminados, entre os quais, e principalmente, o medo, um grande medo.

De que as gentes que marcharam tinham medo?

Tinham medo das anunciadas reformas, que prometiam acabar com o latifúndio e os capitais estrangeiros, conceder o voto aos analfabetos e aos soldados, proteger os assalariados e os inquilinos, mudar os padrões de ensino e aprendizado, expropriar o sistema bancário, estimular a cultura nacional. Se aplicadas, as reformas revolucionariam o país. Por isto entusiasmavam tanto. Mas também metiam medo. Iriam abalar tradições, questionar hierarquias de saber e de poder. E se o país mergulhasse no caos, na negação da religião? Viria o comunismo? O Brasil viraria uma grande Cuba? O espectro do comunismo. Para muitos, a palavra era associada à miséria, à destruição da família e dos valores éticos.

É preciso recuperar a atmosfera da época, os tempos da Guerra Fria. De um lado, os EUA e o chamado mundo livre, ocidental e cristão. De outro, a União Soviética e o mundo socialista. Não havia espaço para meios-termos. A luta do Bem contra o Mal. Para muitos, Jango era o Mal; a ditadura, se fosse o caso, um Bem.


No Brasil, estiveram com as Marchas a maioria dos partidos, lideranças empresariais, políticas e religiosas, e entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), as direitas. A favor das reformas, uma parte ponderável de sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos, as esquerdas. Difícil dizer quem tinha a maioria. Mas é impossível não ver as multidões — civis — que apoiaram a instauração da ditadura.

A frente que apoiou o golpe era heterogênea. Muitos que dela tomaram parte queriam apenas uma intervenção rápida, brutal, mas rápida. Lideranças civis como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, Ulysses Guimarães, Juscelino Kubitschek, entre tantos outros, aceitavam que os militares fizessem o trabalho sujo de prender e cassar. Logo depois se retomaria o jogo politico, excluídas as forças de esquerda radicais.

Não foi isso que aconteceu. Para surpresa de muitos, os milicos vieram para ficar. E ficaram longo tempo. Assumiram um protagonismo inesperado. Houve cinco generais-presidentes. Ditadores. Eleitos indiretamente por congressos ameaçados, mas participativos. Os três poderes republicanos eram o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os militares mandavam e desmandavam. Ocupavam postos no aparelho de segurança, nas empresas estatais e privadas. Choviam as verbas. Os soldos em alta e toda a sorte de mordomias e créditos. Nunca fora tão fácil “sacrificar-se pela Pátria”.

E os civis? O que fizeram? Apenas se encolheram? Reprimidos?

A resposta é positiva para os que se opuseram. Também aqui houve diferenças. Mas todos os oposicionistas — moderados ou radicais — sofreram o peso da repressão.

Entretanto, expressivos segmentos apoiaram a ditadura. Houve, é claro, ziguezagues, metamorfoses, ambivalências. Gente que apoiou do início ao fim. Outros aplaudiram a vitória e depois migraram para as oposições. Houve os que vaiaram ou aplaudiram, segundo as circunstâncias. A favor e contra. Sem falar nos que não eram contra nem a favor — muito pelo contrário.

Na história da ditadura, como sempre, a coisa não foi linear, sucedendo-se conjunturas mais e menos favoráveis. Houve um momento de apoio forte — entre 1969 e 1974. Paradoxalmente, os chamados anos de chumbo. Porque foram também, e ao mesmo tempo, anos de ouro para não poucos. O Brasil festejou então a conquista do tricampeonato mundial, em 1970, e os 150 anos de Independência. Quem se importava que as comemorações fossem regidas pela ditadura?

É elucidativa a trajetória da Aliança Renovadora Nacional — a Arena, partido criado em 1965 para apoiar o regime. As lideranças civis aí presentes atestam a articulação dos civis no apoio à ditadura. Era “o maior partido do Ocidente”, um grande partido. Enquanto existiu, ganhou quase todas as eleições.

Também seria interessante pesquisar as grandes empresas estatais e privadas, os ministérios, as comissões e os conselhos de assessoramento, os cursos de pós-graduação, as universidades, as academias científicas e literárias, os meios de comunicação, a diplomacia, os tribunais. Estiveram ali, colaborando, eminentes personalidades, homens de Bem, alguns seriam mesmo tentados a dizer que estavam acima do Bem e do Mal.

Sem falar no mais triste: enquanto a tortura comia solta nas cadeias, como produto de uma política de Estado, o general Médici era ovacionado nos estádios.

Na segunda metade dos anos 1970, cresceu o movimento pela restauração do regime democrático. Em 1979, os Atos Institucionais foram, afinal, revogados. Deu-se início a um processo de transição democrática, que durou até 1988, quando uma nova Constituição foi aprovada por representantes eleitos. Entre 1979 e 1988, ainda não havia uma democracia constituída, mas já não existia uma ditadura.

Entretanto, a obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar levou, e leva até hoje, a marcar o ano de 1985 como o do fim da ditadura, porque ali se encerrou o mandato do último general-presidente. A ironia é que ele foi sucedido por um politico — José Sarney — que desde o início apoiou o regime, tornando-se ao longo do tempo um de seus principais dirigentes…civis.

Estender a ditadura até 1985 não seria uma incongruência? O adjetivo “militar” o requer.

Ora, desde 1979 o estado de exceção, que existe enquanto os governantes podem editar ou revogar as leis pelo exercício arbitrário de sua vontade, estava encerrado. E não foi preciso esperar 1985 para que não mais existissem presos políticos. Por outro lado, o Poder Judiciário recuperara a autonomia. Desde o início dos anos 1980, passou a haver pluralismo politico-partidário e sindical. Liberdade de expressão e de imprensa. Grandes movimentos puderam ocorrer livremente, como a Campanha das Diretas Já, mobilizando milhões de pessoas entre 1983-1984. Como sustentar que tudo isto acontecia no contexto de uma ditadura? Um equívoco?

Não, não se trata de esclarecer um equívoco. Mas de desvendar uma interessada memória e suas bases de sustentação.

São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura.

Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória. No exercício desta absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia. Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da construção da ditadura.

Enquanto tudo isso prevalecer, a História será uma simples refém da memória, e serão escassas as possibilidades de compreensão das complexas relações entre sociedade e ditadura.

DANIEL AARÃO REIS é professor de História Contemporânea da UFF

Comentários

  • 3 Comentários sorted by Votes Date Added
  • Fernando_SilvaFernando_Silva Administrador, Moderador
    http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/04/05/pais/golpe_ou_revolucao.asp
    Golpe ou revolução?

    Gláucio Ary Dillon Soares - CIENTISTA POLÍTICO
    "Jornal do Brasil" 05 de Abril de 2009


    O debate sobre o caráter da conspiração e do golpe reflete a concepção do Estado acolhida pelos estudiosos: os que percebem o Estado como um todo integrado, tendem a salientar o alto grau de coordenação e, até mesmo, o caráter unitário do golpe e do regime; os que salientam a complexidade do estado e a autonomia das instituições e grupos dentro do estado, tendem a perceber múltiplas conspirações e conflitos dentro do regime.

    Quase todos os que trabalham ou trabalharam dentro do Estado enfatizam o caos, o conflito e a duplicação de esforços. Entretanto, na sociedade civil e entre estudiosos, a imagem mais comum é a do Estado altamente integrado, tal qual transparece no pensamento jurídico, muito influenciado pela Teoria Geral do Estado. A noção de Estado, segundo essa tradição, é abstrata, formal, tendo sido muito influenciada pelo Estado tal qual teria existido nos principais países europeus no século XIX.

    De lá para cá, o Estado se multiplicou e se modificou, dando lugar a uma realidade que clamava por uma teoria mais afinada com ela, com a sua complexidade, com o seu tamanho. O Brasil não foi exceção à tendência secular ao crescimento e à maior complexidade.

    Uma grande estatal, como a Petrobrás ou o Banco do Brasil, emprega um número de pessoas e tem uma receita consideravelmente maior do que todo o Governo Federal do Brasil em meados do século XIX. Entretanto, foi somente nas últimas décadas que as formulações teóricas mais abstratas passaram a refletir essa nova realidade, produto de modificações contínuas ao largo de um século.

    No Brasil, essa nova teorização entrou com considerável atraso, em parte devido à forte influência da tradição jurídico-formal e, em parte, devido à forte influência, nas Ciências Sociais, de uma vertente do marxismo vulgar, que insistia numa visão simplificada do Estado, negando-lhe autonomia, atrelando-o "à infra-estrutura econômica" e subtraíndo-lhe a complexidade.

    As principais pesquisas sobre o regime militar, particularmente sobre o seu início, foram realizadas há duas décadas: seguiram linhas separadas, e tiveram ênfases muito diferentes, mas que tinham a unificá-las a perspectiva, dominante na época, de coerência nas instituições, inclusive no Estado e na instituição militar.

    As duas versões mais aceitas na literatura especializada parecem acatar uma teoria do Estado que enfatiza integração e unicidade. Essa aceitação é implícita, mais por omissão em sublinhar o seu caráter fragmentário num contexto intelectual no qual dominava o suposto da coerência, o que ironicamente chamamos de visão "arrumadinha" do Estado e dos militares.

    Entretanto, essas ampliações teóricas foram muito além do que os dados permitiam. Além disso, elas incorreram em alguns erros:

    - supor uniformidade no pensamento dos militares, desconhecendo que, em qualquer instituição tão complexa, a variação de opiniões é inevitável;

    - analisar a conspiração militar através de uma ótica teórica construída a partir de conspirações feitas por partidos;

    - ignorar que a entrada de Castelo Branco, a grande força unificadora da conspiração, foi feita menos de duas semanas antes do golpe;

    - ignorar que, se, por um lado, a conspiração incluiu elementos e organizações civís, pelo outro, o golpe e o regime foram militares;

    - ignorar que a grande maioria dos conspiradores, particularmente os militares, não tinha qualquer projeto de governo.

    O objetivo deste artigo é reconstruir a história e o caráter da conspiração e do golpe, especialmente da falta de plano de governo ou projeto para o país, entre os militares, durante a conspiração. Os projetos de governo e de Estado vieram a posteriori.

    O general Carlos Fontoura, em resposta a pergunta a respeito da conspiração e do golpe de 1964, usou, espontaneamente, a expressão "ilhas", para caracterizá-los: "Ilhas. Ilhas. Pode escrever isso. Eu lhe dou a minha palavra de honra que eram ilhas. Nós nunca nos centralizamos. Só houve um início de centralização na véspera da revolução. Foi uma circular do general Castelo Branco, chefe do Estado Maior do Exército..."

    O General Meira Mattos, que desempenhou pesados papéis no regime militar, espontaneamente definiu a conspiração como "multipolar". Sublinhou, como Carlos Fontoura, a existência de polos espacial e funcionalmente separados, e a importância da adesão de Castelo Branco. A adesão de Castelo Branco foi o traço de união do que, de outro modo, eram conspirações - no plural - quase isoladas: "A conspiração que acabou na revolução de 31 de março de 1964 foi multipolar. Houve vários polos de conspiração e esses polos não tinham muito entendimento". A leitura dos depoimentos mostra que essa união foi tática e temporária, e que o conflito continuou.

    O general Fiúza de Castro, considerado da linha dura, também enfatizou que o elemento unificador era negativo: "- ...todos estávamos de acordo, sabíamos o que não queríamos, os grupos eram unânimes em saber o que não queriam, não queriam uma república popular instalada no Brasil. Mas o que queriam, aí divergiam muito.

    Mesmo no interior de cada grupo havia grandes divergências sobre o que queriam. Uns queriam apenas afastar o governo, afastar o Goulart e a turma do Goulart. E deixar. Outros queriam instalar realmente um regime forte, ditatorial, que limpasse e impedisse de uma vez por toda que o país voltasse àquele estado."

    Os primeiros trabalhos de pesquisa a respeito do regime militar, superestimaram o quanto de ideologia havia antes do golpe propriamente dito. Inicialmente, as interpretações do golpe partiram de teorias estruturais das conspirações e dos golpes, e não da pesquisa concreta sobre o golpe de 1964. Nossas entrevistas com líderes militares da conspiração corroboram o escrito pelo General Meira Matos, começando com uma entrevista, aos jornais de Goiás, nos primeiros dias do golpe, além de conferências e publicações ao largo de um período muito mais amplo: "A Revolução brasileira somente se concretizou numa dinâmica de direção política após o movimento de 31 de março. Antes disso, era o somatório de aspirações e preocupações diversas, tendo por denominador comum dois sentimentos anti - o anticomunismo e o antijanguismo - sentimentos esses fundidos no espírito de uns revolucionários e fundidos no de outros ... que serviram para a derrubada, mas não serviriam para a construção". Em 1971, agregava o general: "Vitoriosa a Revolução de 31 de março de 1964 ... surgiu o grande problema. Qual o programa da Revolução? ... Assim é que, nos primeiros dias de abril de 1964, o governo empossado se deparava com um problema sério e inadiável ... o de criar uma doutrina para o movimento vitorioso". A exposição do general é cristalina, deixando claro que primeiro vieram a conspiração, o golpe e a conquista do poder, e somente depois o ideário. A ausência de um programa "revolucionário", de uma agenda, de um projeto ou até de um programa de governo, quando os conspiradores tomaram o poder, foi confirmada pelo general Otávio Medeiros que, por um lado, participou ativamente da conspiração e, pelo outro, exerceu funções importantes durante o regime militar, também considerado da linha dura, disse, em resposta à pergunta: "A conspiração tinha um programa?" - O.M. - "Nenhum. Ninguém sabia o que é que ia fazer. Sabia só que tinha que deter aquilo, que não podia mais prosseguir".

    As entrevistas com os militares nos levam a algumas precauções e considerações. O leitor poderia perguntar se a visão dos militares não teria sido "combinada", uma espécie de "história oficial". Entretanto, os militares entrevistados não tinham conhecimento do roteiro da entrevista; eram de "gerações" diferentes e não pertenciam ao mesmo grupo político. Alguns pertenciam a grupos antagônicos, como o "da tropa", cuja figura principal era Costa e Silva, e outros ao chamado grupo da Sorbonne, associado a Castello Branco.

    O fato de que alguns altos próceres militares, assim como suas ações, tivessem sido elogiados por uns e duramente criticados por outros, mostra que as divergências entre estes grupos continuavam fortes décadas depois. Evidentemente, os depoimentos não são retratos da realidade: são parte da memória militar, e não são a história do regime militar.

    Não obstante, julgo que algumas questões foram elucidadas e validadas tanto através da concordância, quanto através da discordância. A avaliação que os militares "de carreira" fazem da cadeia paralela ou técnica é claramente negativa, ao passo que os membros da "comunidade de informações", ao contrário, a valorizam. A discordância valida, explicitamente, a existência de posições conflitantes em relação ao papel da "comunidade de informações".

    O que começou em 1964 não tinha um projeto nacional ou sequer uma proposta de governo. Não havia maquete, nem mesmo um diagrama. Foi contra e não a favor. É um erro dar a um golpe uma coerência e uma consistência que ele não tinha.
  • Fernando_SilvaFernando_Silva Administrador, Moderador
    "O Globo" 14-06-09
    Livro revela entranhas da luta contra ditadura

    ´Diário de Fernando` reúne anotações feitas no cárcere por frade dominicano e faz autocrítica da estratégia da guerrilha

    José Meirelles Passos

    Quatro décadas depois da tentativa de vencer a ditadura militar no Brasil através da luta armada, surge agora um documento gerado nas entranhas daquela batalha que registra, ao mesmo tempo, uma lúcida autocrítica das estratégias utilizadas e detalhes do cruel dia a dia dos presos políticos em cárceres que eram verdadeiras catacumbas. Ele contém, ainda, relatos que exibem, com clareza, a divisão na Igreja Católica a respeito da repressão.

    Uma ala a denunciava; outra a endossava.

    Trata-se do livro “Diário de Fernando”, que será lançado amanhã no Rio de Janeiro, contendo minuciosas anotações feitas às escondidas nas celas, ao longo de quatro anos de prisão (19691974), por Fernando de Brito, um dos frades dominicanos militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella.

    Sonhos destruídos pelo choque de realidade

    Até aqui, apenas três pessoas conheciam esse material.

    Uma delas, Frei Betto, companheiro de cativeiro do autor, foi incumbido por Brito de organizar o material e de dar a ele uma forma literária.

    — Eu tentei tornar legível a outras pessoas tudo o que registrei, mas era muito penoso para mim. A melhor coisa que fiz foi entregar tudo a Frei Betto, que, com muita sensibilidade, soube transmitir a vivência dos presos políticos — disse Brito.

    O diário mostra que não demorou muito para que os militantes que lutavam contra a ditadura no Brasil sofressem um choque de realidade. Em especial para os que de guerrilha só conheciam o que tinham lido a respeito.

    Sem apoio popular, restou a sensação de ver desmoronar um castelo de areia: “Nossos sonhos não incluíam a possibilidade de derrota. A linearidade dos livros não espelhava os sinuosos e acidentados caminhos do real.

    Súbito, a casa edificada sobre a areia, sem alicerce popular, ruiu sob o impacto do aparelho repressivo. Prisões, torturas, delações, mortes...

    "O furacão emergiu, inelutável, a partir do sequestro do embaixador dos EUA, em setembro de 1969, no Rio”, concluiu Brito.

    TRECHO DE “DIÁRIO DE FERNANDO”

    “A carência de militantes frente a afluência de tarefas, quase todas urgentes, induzia a ALN a cometer, com frequência, um dos erros mais graves em matéria de segurança: desrespeitar a especificidade de um revolucionário. Quando se exige de um engenheiro que se improvise em distribuidor de panfletos ou de um jornalista — coletor de informações — empunhar armas, é sinal de que a Organização tornou-se vulnerável por ceder à improvisação.

    Nenhuma pessoa é multifuncional. A sabedoria de qualquer instituição consiste em valorizar os talentos inerentes a cada um de seus adeptos. Não se solicita de um músico que abandone a sua arte para transportar malas de dinheiro entre uma região e outra. Quando a urgência das tarefas supera o número de tarefeiros, é sintoma de que a Organização está febril, comprometida pela exaustão”
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