Breve parágrafo sobre a miséria da meritocracia ideológica
Antes de atacar a idéia de meritocracia eu preciso distinguir qual delas eu estou atacando.
Eu não estou criticando o princípio consagrado em administração que consiste em delegar responsabilidades aos subordinados de acordo com as demonstrações que eles fazem de suas capacidades individuais. Essa é uma regra geral bastante prática e funcional para se alocar funções em uma empresa ou organização de qualquer tipo, uma cuja a observação é praticamente um imperativo incontornável para a sua sobrevivência.
Eu estou atacando o outro uso comum do termo meritocracia, que é a ideologia que procura promover um ideal de justiça social calcado na noção de que pessoas diferentes devam ser expostas aos mesmos desafios iniciais e os mesmos recursos de aprendizado, para que suas futuras posições na sociedade decorram de suas qualidades e talentos inatos ou desenvolvidos em igualdade de condições, e não de qualquer facilidade decorrente das situações financeira ou politicamente privilegiadas de suas respectivas famílias ou contatos sociais.
Essa é uma idéia progressista sutil, porém bastante perniciosa, que em algum grau contamina o pensamento mesmo de pessoas que se consideram vacinadas contra os mitos socialistas. Eu confesso ter implicita ou explicitamente creditado algum valor a essa visão de mundo em outras ocasiões.
Eu especulo que a origem psicológica dessa tendência e a razão do seu sucesso estariam no fato de que ela oferece uma defesa bastante conveniente para o ego daqueles que percebem que sua status social atual não corresponde a sua própria auto-imagem e aquilo que eles idealizavam, e isso porque as oportunidades de ascenção teriam sido escasseadas devido aos privilégios exercidos pelas pessoas menos competentes, porém melhores nascidas ou conectadas.
E esse prisma não distorce a realidade completamente. Contatos sociais e familiares são muitas vezes relevantes para a escolha de um candidato em várias situações, às vezes mais do que suas “qualidades individuais objetivas”. Ainda que muitas vezes esse aspecto seja enfatizado excessivamente, ele existe, e o ponto não é desmenti-lo, mas desmistificá-lo.
O ponto é que pessoas não são átomos isolados, mas pertencem a estruturas e instituições sociais que agregam valor em si mesmas. Muitas vezes o maior valor que um indivíduo oferece é justamente o contato que ele cria entre diferentes instituições das quais ele faz parte. E famílias e grupos de amigos são instituições reais, tanto quanto empresas e organizações formais.
Da mesma forma que os seus contatos conquistados nos seus anos trabalhando numa grande corporação adicionam bastante valor ao seu currículo, o fato de você ter laços sangüíneos e/ou pessoais com pessoas de prestígio também.
Isso porque pessoas com muitos contatos possuem a faculdade especial da alavancagem: elas isoladas podem não ter o que é necessário para resolver um determinado problema, mas elas podem mobilizar seus círculos de maneira a que dentro deles alguém venha a produzir a boa solução, o que, do ponto de vista pragmático de ter o problema resolvido, é igualmente válido.
O problema dessa idéia de meritocracia está no fato dela ignorar a relevância da instituição familiar e do micro-cosmo social do indivíduo como instrumento de transmissão de conhecimento conseqüente na sociedade. Uma família é, no plano abstrato, um apanhado de valores éticos e filosóficos que persiste através das gerações, muito mais do que qualquer substrato genético que com miscigenações diversas se dilui depressa.
Para que a família continue funcionando é importante a crença de que o aquilo que seus membros acumularem de valor, seja em termos de conhecimento e outros valores abstratos, seja em termos de riquezas materiais, será preservado dentro da família e expandido pelas próximas gerações. Da mesma forma para quase todas as instituições humanas que visam algum tipo de persistência ou posteridade à vida dos indivíduos que atualmente as compõem, sejam essas organizações escolas, empresas, igrejas ou estados.
A sociedade não é um jogo esportivo equilibrado, ela é o resultado de diversas pessoas procurando melhorar suas condições, cooperando umas com as outras da maneira mais eficaz que puderem. Algumas pessoas ou instituições formais e informais encontram-se em condições mais avançadas do que outras, e não faz sentido desperdiçar o valor que essas entidades agregaram em nome de qualquer ideal igualitário.
Comentários
Pelo que eu entendo, essas condições iniciais providas pela família ou grupo do indivíduo (ou mesmo sua experiência anterior) não são injustas, assim como não são as vantagens genéticas (uns são mais fortes, mais rápidos, mais espertos, mais capazes numa determinada atividade que outros).
Já nascemos diferentes e nos tornamos ainda mais diferentes a cada dia e seria um absurdo - e contraproducente para a sociedade como um todo - nivelar por baixo (já que não é possível nivelar por cima). Entretanto, ninguém deveria ser impedido de desenvolver sua capacidade por falta de dinheiro para estudar e até para comer. E, se todas as demais condições forem iguais, o mérito deve ser o critério de desempate.
Quando defendo a garantia de oportunidade, isto é sempre individualizado e não comparativo com os demais cidadãos.
Cidadãos que partem de diferentes pontos é a realidade. Nestes casos, não é desejável intervenção para nivelar, pois isto não é o que entendo por garantir oportunidades.
A comparação que é feita entre cidadãos cria a perversidade num sistema que se quer justo. As pessoas acabam pensando que lhes deve ser garantido igual condição ao do vizinho. E isto, não é desenvolver o potencial pessoal, antes igualizar potenciais diversos.
Para exemplificar no concreto. O que entendo por garantir oportunidade no modo mais simples é cada cidadão ser livre.
Mas se fosse viável e não fantasioso seria sim algo desejável.
Entretanto, me permita trazer o que serve na maioria das vezes como a principal base do argumento a favor dessa meritocracia artificial...
... que é questionar se o avanço dessas instituições e indivíduos não ocorreu de forma criminosa e imoral.
Exato. Meritocracia não existe, por isto a odeio.
Triste, mas é a realidade. Intervir na justa medida, a escola publica é uma dessas intervenções.
No passado, os ricos tinham professor privado em casa.
Os pobres, também tinham ensino, trabalhando como aprendiz.
No entanto, a escola publica permitiu a todos tentarem, e isto é a grande oportunidade. A possibilidade de ganhar o bilhete da lotaria - Ganha quem joga.
?
Sim, mas não apenas.
Pode-se muito bem discutir o quanto de mérito existe em possuir “vantagens genéticas” sobre outras pessoas, mas não é esse o meu ponto.
O que eu enfatizei é que coisas que em geral não são observadas como talentos individuais dignos de “mérito” às vezes são mais úteis do que coisas que são. Por exemplo, o fato de pertencer a uma família ou comunidade específica de prestígio, ou seja, ter o tal do Q.I. (
“quem indica” [sic]), é muitas vezes algo pragmaticamente mais importante do que ser capaz de resolver muitos problemas de maneira autônoma.
Em geral nós veríamos o sujeito talentoso para resolver uma vasta classe de problemas de maneira autônoma como mais qualificado do que o sujeito que depende de uma rede de associados, mas do ponto de vista prático o que conta é ter o problema resolvido.
O primeiro modo de pensar, o modo de pensar do nerd, é o de que se ele acumular uma grande quantidade de habilidades individuais particulares ele vai prosperar devido a sua grande utilidade. Seu modelo de proficiência é o McGyver, o cara que em qualquer situação consegue desenvolver isoladamente uma solução elegante.
Mas pensando pragmaticamente, dentro de uma sociedade com divisão extensiva do trabalho, ser o McGyver é bem pouco eficaz. As pessoas mais eficazes não possuem muitas skills particulares, mas sabem como acessar essas skills atraves de outras pessoas e usá-las a seu favor.
Mesmo assim nós temos o vício cognitivo de achar que alguém que se aproxima de um McGyver possui mais mérito e necessariamente deveria ter um status social maior do que alguém mais dependente dos outros.
É preciso tomar cuidado com abusos de linguagem do tipo “(contra-)producente para a sociedade como um todo”. A “sociedade como um todo” é um efeito da ação humana gerando ordem, e não a sua causa.
De toda forma, slogans do tipo “ninguém deveria ser impedido de...” são especialmente perniciosos.
Ninguém levaria a sério se eu dissesse que o meu potencial me permite caminhar na lua, exceto pelos impecilhos criados pelo orçamento das agências espaciais capazes de me enviar para lá.
A escassez é um fato da natureza, não uma opção.
Existem ordens de prioridade definidas pelos proprietários dos recursos escassos, e talvez muitos deles encontrem prioridades maiores do que as de desenvolver certos potenciais de pessoas menos avançadas.
Quem é que define quais potenciais são imperativos de serem desenvolvidos em todo mundo?
Desenvolver potenciais envolve custos. Custa algo alfabetizar alguém, assim como custa algo transformar alguém em um comandante de ônibus espacial.
Em princípio eu acredito que muitas pessoas possuam potenciais enormes dentro de si, eu só não consigo concluir porque deve ser a obrigação dos outros se ocupar de desenvolve-los.
Exatamente.
A única exigência moral que uma pessoa pode fazer sobre as demais é que elas não violem a sua liberdade de procurar melhorar sua condição.
Ela não tem direito a nada exceto isso. Não tem direito a comida, não tem direito a educação, não tem direito a quaisquer favorecimentos específicos devido às suas “origens humildes”.
Ela tem direito apenas ao respeito alheio e ao próprio orgulho.
A vida pode ser uma “loteria”, quando vista de um ângulo pessimista, pois de fato existem muitas componentes fortuitas definindo os destinos das pessoas.
Mas quando vista por outro ângulo, mais abrangente, vemos que as melhores idéias costumam eventualmente prevalecer sobre as piores, e uma nítida evolução é observada. Isso tanto na vida do indivíduo quanto na história da humanidade.
É claro que se pode dizer que essas melhores idéias também ocorrem por acidentes fortuitos a certas pessoas, privilegiadas pelo destino. Mesmo pessoas óbviamente mais habilidosas, disciplinadas e diligentes teriam a sorte de o serem, ou de terem o terem se tornado.
Não é exatamente disso que eu estou falando. Essa interpretação pessimista do mundo não pode ser falseada, e justamente por isso ela é tão inútil quanto qualquer outra que possua tal característica. Coisas que não são falseáveis não permitem realizar distinções e sem distinções não há muito o que se discutir.
O que eu estava falando era da distinção entre certas habilidades individuais, vistas como “dignas de mérito”, de certas situações sociais, vistas como “privilégios”. Eu inseri essa distinção dentro do contexto pragmático concreto da solução de problemas práticos das pessoas, e como instituições se relacionam e procuram usar a informação agregada por cada uma delas para buscar esse objetivo. Dentro desse contexto, pouco importa se a solução foi encontrado por um insight isolado do indivíduo-McGyver ou se foi obtida mediante telefonemas feitos a especialistas conhecidos.
Sim, mas aí escapa ao tema proposto.
Obviamente existem maneiras ilegais e imorais de obter vantagens, mas estamos falando aqui de maneiras "meritosas" e "demeritosas", porém ambas legais.
Ou seja:
1. Ter mais que os outros, seja por sorte, apoio do grupo ou pelo esforço individual, não é crime.
2. Se os recursos são escassos, ninguém deve ser forçado a abdicar de seus projetos de vida e suas conquistas para ajudar a desenvolver os projetos dos menos afortunados.
3. Por outro lado, havendo recursos, é do interesse de todos que sejam dadas condições para que os menos afortunados desenvolvam seu potencial.
Veja bem Fernando. Não estamos discutindo o valor da aspiração em se ajudar alguém menos afortunado a se desenvolver.
Aliás eu considero essa uma das experiências mais gratificantes que alguém pode ter, sobretudo quando se ensina algo a alguém, mesmo que "a troco de nada", e não tanto quando se dá algo pronto.
Mas o fato é que por mais que eu valorize essa atitude, eu não posso assumir que ela deve ser imposta sobre quem não a considera tão relevante.
"Havendo recursos" dá bastante margem para interpretações perigosas. Enquanto você tiver mais recursos do que outra pessoa, em princípio, você possui condições de permitir que aquela pessoa desenvolva seu potencial um pouco mais. Mas deve ser você a determinar o quanto você quer se envolver nisso, e não uma terceira parte.
Aí já entramos na destinação a ser dada aos impostos recolhidos. O quanto se deve reservar para a criação de oportunidades? Qual a prioridade?
Eu sei.
Considerei que poderia ser interessante demonstrar como um argumento comum em defesa dessa suposta meritocracia está errado, mesmo ele saindo das questões principais, já que muitos defensores dela são socialistas que fazem uma enorme confusão com os princípios que estão sendo discutidos.
2- Uma coisa não elimina a outra, existe dentro de limites e esforços recompensas para o mesmo, nego a existência de meritocracia naquela que se supõe que todos possam ter igualdade de oportunidades e que as pessoas sempre recebam o que merecem, o que contradiz em absoluto a realidade.
3- Isso seria a completa negação do mérito, em todas as suas instâncias, nem de longe foi a minha intenção.
4- Será mesmo? E o inverso? Como falsear o mérito?
5- Entendi, boas relações pessoais poderiam sim ser considerados como méritos sociais, não apenas o sorriso fortuito do destino, só faria uma exceção no caso dos pais.
Nada.
“Criação de oportunidades” é um slogan político e nada mais.
Todos os recursos que o governo emprega para “gerar oportunidades” seriam empregados gerando outras oportunidades por agentes no livre mercado, se eles não tivessem sido subtraídos na forma de tributos.
E provavelmente gerando oportunidades mais conseqüentes, já que os agentes no mercado teriam incentivos mais coerentes e mais informação útil para procurar os investimentos que realmente dariam retorno econômico do que burocratas manipulando verbas que não lhes pertencem.
A única dimensão onde o governo é mais eficaz gerando oportunidades que o mercado é a dimensão retórica.
Se for possível concluir que o relativo avanço de um indivíduo ou instituição se produziu mediante a violação de princípios legais previamente estabelecidos, ou seja, que houve enriquecimento ilícito, o indivíduo deve ser punido de acordo com as previsões estabelecidas na lei.
A finalidade desse procedimento não é restaurar uma meritocracia, mas é a de fazer prevalecer um ambiente de justiça, no qual novas instâncias de ilegalidade serão menos interessantes do que poderiam ser num ambiente de impunidade.
Existem alguns pontos aqui a serem abordados.
O primeiro é a questão da situação da família. Se você parte da perspectiva que uma família é uma circunstância exógena arbitrária ao indivíduo, você tem razão em dizer que ele pode ter a sorte ou o azar de nascer numa família rica ou pobre.
Mas eu considero esse tipo de pensamento bastante rudimentar. Me soa algo como o misticismo espírita, onde almas pré-existentes seriam afetadas segundo algum critério desconhecido por nós a certas famílias. Acho esse sistema de mundo bastante primitivo e um tanto ridículo.
Para mim a relação entre a sua identidade individual e a sua família é bem mais fundamental, de maneira que a idéia de que a família é uma coisa que acontece a alguém definido não me parece ser aplicável na maioria dos casos. A família é em grande parte o que define alguém em primeiro lugar. Não faz sentido pensar “se eu tivesse nascido numa família mais rica” porque nesse caso você não seria mais você.
Talvez em alguns cenários particulares, onde algum parente surge criando problemas, possa-se pensar na família como sendo algo mais exógeno a sua identidade, mas não o completo contexto familiar onde alguém nasceu e cresceu porque isso é uma parte intrínseca daquilo que você é.
Nesse contexto eu acho que faz mais sentido deslocar o ponto de vista do indivíduo para a família justamente, pois as famílias também são entidades portando valores e conhecimento agregado para a tomada de decisões conseqüentes no mundo. Algumas famílias prosperam mais do que outras.
O fato é que seres humanos nascem em famílias e boa parte do que eles aprendem é transmitido em um contexto comunitário familiar. Por essa razão, é a família é a entidade conservadora quintessencial e para o progressista, a família é a mais abjeta das instituições humanas. É aquela que ele mais avidamente procura destruir. A simples noção de que valores familiares são coisas relevantes coloca o progressista num estado de cólera. O progressista devota praticamente a totalidade de sua atividade intelectual a procura de formas de desconstruir a fábrica instituicional que mantém a família como instituição integrada e funcional.
Por exemplo, eu tenho para mim como bastante verdadeiro a noção de que aquilo que torna filhos de pessoas bem sucedidas melhores sucedidos costuma ter muito mais a ver com a forma como suas famílias lhes ensinaram a enxergar oportunidades e tomar atitudes a respeito delas do que privilégios “ilegítimos” que eles possam ter adquirido usando a afluência de seus pais. Tenho firmemente para mim que a maior riqueza das famílias prósperas é a sua própria mentalidade abundante transmitida para as novas gerações, e não os ativos físicos controlados por elas. Uma das muitas provas disso são as famílias judias sobreviventes porém materialmente arruinadas pela ascenção do terceiro Reich, que não muito mais tarde já teriam consigo retornar a estágios similares de prosperidade aqueles que gozavam antes do Holocausto.
O conceito progressista de meritocracia é em grande parte um elaborado ataque a essa concepção de família. Ao desconsiderar os méritos de uma educação avançada proporcionada por um ambiente familiar funcional e próspero, transferindo-os para o esforço sofrido em ambientes familiares mais hostis, o que se faz é destituir a família de uma parte importante dos seus valores e significados.
Eu não estou dizendo que não haja lições a serem aprendidas em condições desfavoráveis. Muitas pessoas souberam transmitir valores a seus filhos em condições materiais bastante humildes, e muitos sairam enobrecidos de privações. Essas situações fornecem para aqueles equipados com uma apreciação otimista da realidade uma perspectiva das coisas e uma visão de como perseguir uma melhora.
Mas dado duas pessoas dotadas dessa visão otimista das coisas e motivadas a construirem suas realidades, a idéia meritocrática de que aquela com origens mais abastadas deva ser prejudicada em favor daquela com origens mais humildes é uma completa fraude progressista.
O mesmo vale para outros aspectos limitantes que você listou. Nenhum deles comporta mérito ou demérito em si. O que vale é a forma como a pessoa os admite para então passar a lidar com eles e tentar contorná-los, criando uma realidade melhor para si.
A busca por uma igualdade artificial de oportunidades é inconsistente com o fato de que a realidade e o conhecimento sobre a realidade são em grande parte coisas circunstanciais em locais.
Na medida em que oportunidades são formas de conhecimento, elas também herdam esse caráter.
Elas não podem ser igualmente destribuídas sem incorrer num enorme custo proibitivo de transmissão de informação. E provavelmente elas se dissipariam antes que todas as pessoas potencialmente interessadas nelas tomassem conhecimento da sua existência.
A realidade é heterogêneo num certo nível, e as oportunidades também são. Não há nada de errado com isso.
O único conceito de mérito que é prejudicado por essa realização é o da meritocracia fraudulenta progressista, que pressupõe igualdade perfeita de oportunidades como prerrogativa para a afetação de mérito.
O mérito real, conseqüente, consiste simplesmente na ação executada em face a oportunidade existente.
O mérito é uma faculdade individual, subjetiva. O seu mérito não depende das circunstâncias alheias. O seu mérito é aquilo que você faz com o que lhe foi dado.
Acho que você quis perguntar como falsear a interpretação otimista do mundo que eu proponho.
Eu acho que o otimismo é uma prerrogativa do empreendimento racional, e a possibilidade de razão é a prerrogativa do próprio debate, tanto externo quanto interno. Você precisa acreditar em algum nível que o seu pensamento terá algum efeito positivo significativo no seu estado atual para justificar o esforço empreendido nele.
É claro que você pode em algumas camadas do seu discurso nublar essa idéia, talvez elaborando uma peça de argumentação que pareça atacá-la. Mas acho que isso é um episódio de dissonância cognitiva decorrente das dificuldades existentes em se operar de maneira completamente coerente em níveis muito abstratos de pensamento.
2- Com certeza, uma vez que não podemos escolher o berço aonde nasceremos, esse se torna um dos principais aspectos da grande loteria da vida, talvez o maior desses aspectos.
3- Se você imaginar algum tipo de entidade ou sistema prévio determinando tais coisas, o referido misticismo espírita, então concordo com você, é ridículo, mas não é o que estou dizendo, ninguém escolhe isso, nem a pessoa e nem um sistema por trás dos eventos, é apenas... loteria.
4- Nesse sentido, o "você" referido estaria em melhores ou piores condições independente de quem fosse ou se tornaria, não estou pondo em questão a identidade das pessoas, apenas as condições mais ou menos favoráveis a partir de caracteres fora de seu controle, fora de seu mérito ou culpa, aquilo que é aleatório e ainda assim determinante em sua vida, nesse aspecto, dada a grande quantidade de itens dessa lista que digo que a vida é uma loteria.
5- Se a família é assim tão determinante, não acaba sendo mais um argumento a favor da loteria? Visto que não temos um conhecimento prévio e muito menos a escolha de qual família pertenceremos?
6- Sem dúvida, mas quando se fala na existência de mérito geralmente a perspectiva é mais individualizada.
7- Não faço a mínima questão de nenhum desses rótulos, nem a de conservadora e nem de progressista, e nesse tópico não coloquei em questão o valor da família enquanto instituição social e formação de indivíduos, apenas coloquei a minha visão sobre a realidade, da qual considero que a aleatoriedade da vida é um fator mais preponderante do que méritos pessoais.
8- Isso se deve a educação econômica comum aos judeus e outras etnias como dos japoneses, isso lhes proporcionou uma vantagem entre outras famílias que ora encaram a educação econômica como irrelevante, ora tem uma visão demonizada do dinheiro graças a influência do cristianismo (a tal teologia da prosperidade veio bem depois).
9- Destruir a família, assim como qualquer outro valor que o indivíduo possa se espelhar faz parte de qualquer tentativa de controle ideológico, seja progressista, conservador, religioso, político, etc...
10- Exatamente esse otimismo que estou pondo em questão, família, preparo, ações diversas tentando obter os melhores resultados possíveis, todas são válidas e essenciais a nossa experiência, não é contra tais que estou a argumentar, e sim referente a seus limites e se sobrepujam ou não a grande loteria da vida.
Um exemplo prático, uma pessoa pode morrer de câncer de pulmão aos 25 anos sem nunca ter colocado um cigarro na boca, enquanto outra vive até os 88 anos fumando desde de a adolescência, é claro que a pessoa que fuma está comprando vários bilhetes e suas chances são bem maiores de ser "sorteada" para um câncer de pulmão, mas ainda assim é loteria, e se é assim em um caso tão claro como esse o que dizer dos outros aspectos cuja a relação de causa e efeito não é tão clara?
11- Concordo em gênero, número e grau.
Como eu disse antes, o resultado prático acaba sendo o de socializar a miséria e nada mais.
12- Pensamento positivo em muitos casos é placebo, se ajudar, é bem vindo.
Essa é uma discussão que remete necessariamente a questão das decisões em incerteza, a natureza do risco e o próprio livre arbítrio.
Acho que um primeiro aspecto técnico a esclarecer é o caráter epistemológico da probabilidade e do risco e como esses conceitos são abusados em analogias falsas que evocam loterias onde elas não existem.
A probabilidade é uma propriedade do conhecimento prospectivo do observador sobre o observado, é o grau de consistência entre cada expectativa racional que ele forma e a realização que ele percebe. Essa consistência pode ser por exemplo a freqüência estatística com que cada cenário se produz em casos considerados pelo observador como categoricamente análogos.
O risco é a combinação percebida entre a qualidade de um estado de mundo induzido pela realização de um cenário e a probabilidade que foi-lhe afetada. Essa combinação é feita de maneira ligeiramente diferente por cada pessoa, e quando ela é estimada quantitativamente (através de preferências reveladas) ela produz o chamado de "grau de aversão pelo risco".
O processo de decisão consiste em conceber cenários distintos e afetar-lhes probabilidades, e então proceder os custos para reduzir a probabilidade de cenários considerados ruins e/ou aumentar a de cenários considerados bons, de maneira a incorrer numa mistura de exposição considerada mais adequada do que as outras. Isso se chama “gestão de risco”.
Toda uma discussão interminável de natureza metafísica e teológica poderia ser evitada ao se esclarecer que fora desse contexto, não faz nenhum sentido discutir probabilidades.
Cenários não esperados e eventos não observados não portam probabilidades. Probabilidades só começam a fazer sentido dentro de um quadro onde o indivíduo forma expectativas sobre o comportamento do mundo.
Dessa forma não faz sentido discutir as probabilidades dos cenários que antecedem e produzem o observador, do ponto de vista do próprio observador e seu estado de conhecimento atual. Eu enfatizo o aspecto prospectivo justamente porque não há um conceito coerente de probabilidade retrospectiva. Você pode até discutir probabilidades de eventos realizados, mas apenas no contexto de informação reduzida na qual o observador se encontrava antes de conhecer a realização dos eventos.
No caso do indivíduo e suas condições de nascimento, isso é simplesmente impossível, pois ele não formava expectativa alguma antes de nascer, de maneira que não há qualquer loteria envolvida. Pelo menos do ponto de vista dele próprio. Já do ponto de vista do seus pais sim. É uma loteria por exemplo o fato do bebê nascer homem ou mulher, do ponto de vista de sua mãe, mas não do ponto de vista dele próprio. Seu sexo é um dado da realidade do qual ele apenas toma conhecimento retrospectivo e sobre o qual ele não forma expectativa alguma (ao menos na grande maioria dos casos...).
Isso pode parecer muito abstrato ou apenas uma elaboração do óbvio, mas é uma distinção fundamental que muitas vezes é ignorada.
[continua]
A questão de uma identidade é importante para a própria definição daquilo que é ou não aleatório, pois as coisas não são aleatórias em si, mas referentes a um estado de conhecimento individual que portanto pressupõe a existência de uma identidade em primeiro lugar. É impossível fugir desse postulado metafísico.
O mérito é a correspondência entre a decisão e o objetivo. E nesse contexto existe uma loteria. Isso porque nem sempre a decisão é suficiente para definir o cenário realizado, em geral há uma componente de aleatoriedade que não está sob controle.
O exemplo que você deu é bastante pertinente. Para se procurar o objetivo de viver uma vida longa e saudável faz mais sentido optar por abster-se do consumo de cigarros. Isso não quer dizer que os males associados ao fumo não ocorrerão, mas sim que estes cenários terão suas probabilidades significativamente reduzidas. Da mesma forma, fumar aumentaria a probabilidade desses cenários, o que não quer dizer que eles se produzirão.
Mas o raciocínio aqui é considerar uma coleção de situações suficientemente análogas e detectar as incidências estastíticas dos cenários de acordo com cada uma das decisões possíveis, assim como a qualidade de cada um deles, e assim fazer a gestão dos riscos percebidos.
A percepção do mérito na tomada de decisões é uma forma de dizer que existe uma diferença qualitativa entre processos de tomada de decisão. Que agir de acordo com um objetivo tende a produzir uma realidade em maior harmonia com esse objetivo. Mas não que haja garantias.